por um manifesto de teatro
quinta-feira, 22 de julho de 2010
LOCAL - KRUPPA
O WORKSHOP ACONTECERÁ NO KRUPPA - AV. FEIJÓ, N° 804, CENTRO - PRÓXIMO Á BIBLIOTECA MUNICIPAL MÁRIO DE ANDRADE
quarta-feira, 14 de julho de 2010
INSCRIÇÃO
OS INTERESSADOS DEVERÃO ENCAMINHAR E-MAIL PARA: dramaturgiadacena@gmail.com ou rafaelguerche@gmail.com, CONSTANDO NOME E ATIVIDADE DESENVOLVIDA (OU ÁREA DE ATUAÇÃO) ATÉ O DIA 21(QUARTA-FEIRA)DE JULHO.
O LOCAL ONDE ACONTECERÃO OS ENCONTROS AINDA SERÁ CONFIRMADO PELO BLOG E TAMBÉM PELOS E-MAILS ENVIADOS ATÉ A DATA DE SUA DIVULGAÇÃO.
QUAISQUER DÚVIDAS ENCAMINHÁ-LAS PARA O E-MAIL MENCIONADO ACIMA.
O WORKSHOP É GRATUITO E NÃO HAVERÁ RESTRIÇÕES ATRAVÉS DOS E-MAILS. A INSCRIÇÃO SERÁ CONFIRMADA PELO E-MAIL ENVIADO.
OS DIAS EM QUE ACONTECERÁ O WORKSHOP SÃO: 22 (QUINTA-FEIRA),23 (SEXTA FEIRA)DE JULHO COM INÍCIO ÁS 18 HORAS E TÉRMINO ÁS 21 HORAS E 30 MINUTOS. NO DIA 24 (SÁBADO)INÍCIO ÁS 10 HORAS E TÉRMINO ÁS 16 HORAS.
OBSERVAÇÃO: O ENDEREÇO DO E-MAIL PARA INSCRIÇÃO NO BLOG ESTAVA ERRADO, FOI ALTERADO.
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O WORKSHOP É GRATUITO E NÃO HAVERÁ RESTRIÇÕES ATRAVÉS DOS E-MAILS. A INSCRIÇÃO SERÁ CONFIRMADA PELO E-MAIL ENVIADO.
OS DIAS EM QUE ACONTECERÁ O WORKSHOP SÃO: 22 (QUINTA-FEIRA),23 (SEXTA FEIRA)DE JULHO COM INÍCIO ÁS 18 HORAS E TÉRMINO ÁS 21 HORAS E 30 MINUTOS. NO DIA 24 (SÁBADO)INÍCIO ÁS 10 HORAS E TÉRMINO ÁS 16 HORAS.
OBSERVAÇÃO: O ENDEREÇO DO E-MAIL PARA INSCRIÇÃO NO BLOG ESTAVA ERRADO, FOI ALTERADO.
domingo, 11 de julho de 2010
Workshop - Encontros Livres em Araraquara
A CENA E SUAS DRAMATURGIAS DE COMPOSIÇÃO POÉTICA
(Pela Investigação no Espaço Vazio)
Este workshop de encontros livres pretende abordar a experimentação e investigação de uma dramaturgia escrita na cena a partir do treinamento e composição no espaço vazio. Entendendo aqui dramaturgia como um movimento presentificado na escrita que se dá pela cena e na ocupação do espaço teatral poetizado pelos desejos e impulsos da expressão do artista - seu manifesto e discurso cênico deverão contribuir para a essência e criação desta dramaturgia da cena.
O espaço vazio é um espaço de jogo, portanto o espaço do risco e liberdade das escolhas atentas as necessidades da cena, na dilatação da percepção deste espaço vazio será colado enquanto busca e provocação a construção de uma dramaturgia escrita pela cena e em cena, tendo como ferramentas o treinamento físico do ator, improvisações livres e elaboradas. Serão lançadas perguntas que partirão de um material dramaturgico - A peça Coração de Heiner Muller e Sobre o Coração, Um Manifesto (texto que venho trabalhando com um livre coletivo formado por aprendizes da Escola Livre de Teatro) - este material será guia para um livre exercício que irá se desenvolver pelas necessidades do processo do workshop. A tentativa será disponibilizar dos nossos próprios repertórios e de um novo repertório de treinamento para a composição de um manifesto dramaturgico conquistado pelo fazer da cena. Também existirá um espaço para discussão e teoria do tema tratado pela workshop e outras questões relacionadas ao teatro contemporâneo, o trabalho do ator e dramaturgia, não serão apenas textos sobre a teoria do teatro, estes deverão ser disponibilizados durante os encontros.
O teatro da contemporaneidade se reinventa, reformula, conquista sentidos novos e horizontes distintos. O espaço vazio da composição se coloca neste cenário enquanto uma possibilidade de treinamento e exercício. Um teatro que se manifesta na existência de um espaço vazio ocupado por um agente em fluxo, preenchendo de sentido lacunas e revelando a arquitetura cênica - sua história e fabulações - na presença de um espectador atento a ação deste agente compondo neste espaço de risco, portanto espaço de jogo e acontecimento. Por meio de um treinamento físico e sensibilizador do ator, improvisações livres e elaboradas, workshops e testemunhos dos participantes, será proposto um mergulho nesta possibilidade de experienciar uma dramaturgia escrita pela poética do repertório de cada indivíduo em relação e jogo, de uma escrita possível pelo acontecimento da cena, de uma escrita livre da cena composta em e pela cena.
PÚBLICO ALVO
Aos Interessados no fazer e investigação da cena, sendo atores, diretores, dramaturgos, músicos e também para interessados de outras áreas e linguagens. Vale ressaltar que estes encontros não tratarão de workshops de dramaturgia enquanto produção de texto. A dramaturgia proposta é um exercício do fazer da cena, uma abordagem do trabalho da interpretação, investigação da composição e jogos cênicos.
RAFAEL GUERCHE - Aprendiz da Formação de Ator da Escola Livre de Teatro desde 2009, onde trabalhou com mestres como Luis Mármora, Ana Roxo, Lucia Gayoto e Thiago Antunes, atualmente são os seus mestres Antônio Rogério Toscano, Camila Bolaffi (Cuca), Juliana Monteiro e Cristiano Gouveia. Na Escola Livre de Teatro atuou nos seguintes exercícios cênicos: Crônica de Uma Morte Anunciada de Gabriel Garcia Marques e Um Artista da Fome de Franz Kafka, tendo a Direção e Orientação de Luis Mármora, atualmente trabalha no exercício A Noite de Harold Pinter e estudos da obra do dramaturgo alemão Bertolt Brecht com Direção e Orientação de Antonio Rogério Toscano, Camila Bolaffi (Cuca), Juliana Monteiro e Cristiano Gouveia. Também na Escola Livre é dramaturgista orientado pela Mestra e Dramaturga Ana Roxo no Núcleo de Teatro de Rua, participando da criação de dramaturgia do exercício cênicos De Solados apresentado em espaços de rua em Santo André e São Paulo e na Mostra do Tusp. Em 2008 dirigiu durante o Processo Colaborativo - O Lugar da Luta (versus) A Luta Pelo Lugar, o exercício cênico O Espelho, pequeno texto do autor uruguaio Eduardo Galeano, com orientação do Mestre e Diretor Francisco Medeiros, Luciene Guedes, Lú Carion, Rodrigo Bolzan e Marcio Castro. Está trabalhando na criação dos textos Um Manifesto Para hamlet e ulisses, De quando me tornei o ser que não era sendo o ser que sou, O Voô do Pássaro Amarelo, Sobre o Coração - Um Manifesto e De quando Despertamos no Outono Ausente de Abraços, material estudado por um Coletivo Livre de aprendizes das formações de ator da Escola Livre de Teatro, neste coletivo atua como dramaturgista e diretor; com a atriz Isabel Teixeira investiga a Escrita na Cena. Integra o núcleo de estudos de Teatro Contemporâneo da SP Escola de Teatro, orientado por Silvana Garcia, também professora da Escola de Artes Dramática. Em parceria do músico, cantor e compositor Hugo Branquinho, trabalha na composição de canções para cena e shows. Com a atriz Mawusi Tulani desenvolve o projeto Por Um Manifesto Amoroso, também material de sua composição dramaturgica.
MATERIAIS-PROVOCAÇÕES-DRAMATURGISMOS
O ATOR ENQUANTO POETIZADOR DA AÇÃO – UMA DRAMATURGIA DO MANIFESTO
Antonin Artaud, nos provoca com a possibilidade de cavarmos no teatro um espaço para a manifestação das nossas dores e sofrimentos, um espaço para o nosso testemunho vivo, pulsante e criador, a leitura que faço é distinta de um teatro terapêutico e psicodramático, onde me purgo das minhas enfermidades, embora acreditasse que o teatro na antiguidade e muitos dos rituais dionisíacos, tinham como possível finalidade exercer um processo de cura das enfermidades da pólis (cidade), estou lendo esta provocação do Artaud em relação a cena contemporânea, em que o manifesto do artista compõe uma dramaturgia que se lê em cena, em cada movimento, nos gestos, na ocupação do espaço, nas palavras do intérprete, sendo este o ator, o dramaturgo, o encenador e também o espectador. Artaud compreende o ator como um poeta da ação, um atleta sensível, muitos encenadores e treinadores do teatro são absolutamente influenciados por esta provocação artaudiana e compõem a cena contemporânea a partir desta busca de conquistar á cena o seu discurso próprio, substantivo, entre eles estão Jerzy Grotowski e Peter Brook.
O ator é o sujeito que assume um lugar no espaço do jogo, que se coloca em relação as regras do jogo e, escreve cênicamente com as necessidades estabelecidas pelo próprio jogo. Na condição de poeta, o ator, assume a palavra, se torna responsável pelo discurso da cena, um discurso próprio, mas não repleto apenas de seus desejos, antes um discurso atento a realidade do teatro e o que está além dos seus limites – nos acontecimentos teatrais do cotidiano. No espaço vazio escreve no ar sua dramaturgia, empresta ao discurso cênico o seu manifesto, partindo do risco e desconhecido, se lança na criação concreta de novas linguagens e meios de comunicação com espectador – participante da cena ( a observação também é elemento expressivo do jogo, observar é agir).
Tal como um xamã, o ator manifesta as condições reais do ritual coletivo. Não está na condição de agente central da cena, está em relação aos elementos que a compõem. Seu fazer e ofício são frutos de um processo coletivo, onde a individualidade é uma pausa, um respiro, um movimento, um ponto, uma vírgula, escritos sempre á muitas mãos.
Em seu texto O Ator Pós-Dramático, Mateo Bonfito nos fala de um ator que não representa, mas que “presenta”, se presentifica no acontecimento, e não medeia a reprodução de uma dramaturgia pronta e fechada, este seria um ideal possível do ator deste tempo – da contemporaneidade. A dramaturgia também se apresenta enquanto um discurso aberto, em transformação, assim como o corpo do ator – suas ações, e o olhar do espectador. Na presentificação do ato, na condição do jogo e não de sua representação ou reprodução das suas regras, o ator fabula em sua trajetória pelo espaço vazio de composição, poetizando os seus sentidos, manifestando a sua presença presente nos conflitos dados pela situação da cena em fluxo e constante movimento.
A partir do texto “A ESCRITA NA CENA anatomia de uma dramaturgia do coração” de Isabel Teixeira, um testemunho sobre o processo de criação da dramaturgia do espetáculo Rainha(s) – Duas Atrizes em Busca de um Coração, tomei como provocação, a condição de escrever uma dramaturgia do coração, onde a ação e seu discurso se dá pelo corpo á corpo, a cena se faz pelo suor e sangue, pelo fluxo das sensibilidades e pensamentos, por um teatro não estabelecido, ainda em construção e desconstrução, ainda em processo. Qual é a dramaturgia que vem do coração? Que pulsa como minha necessidade urgente. E qual a urgência da minha necessidade? Quantas janelas e portas para uma composição poética e dramaturgica o espaço vazio me apresenta? Qual a busca do meu coração neste espaço de celebração do coro que desde os gregos nomeamos teatro ( o lugar de onde se vê)? Algumas entre tantas outras perguntas que não procuram uma resposta acertiva e absoluta, mas que me movem neste espaço vazio da criação.
PEÇA CORAÇÃO
Heiner Müller
Um- Posso pôr meu coração a seus pés.
Dois- Se não sujar meu chão.
Um- Meu coração é limpo.
Dois- É o que veremos.
Um- Eu não consigo tirar.
Dois- Você quer que eu ajude?
Um- Se não incomodar.
Dois- É um prazer para mim. Eu também não consigo tirar.
Um- (Chora)
Dois- Vou operar e tirar para você. Para quê que eu tenho um canivete. Vamos dar um jeito já. Trabalhar e não desesperar. Pronto – aqui está. Mas isto é um tijolo. Seu coração é um tijolo.
Um- Mas ele bate por você.
(Tradução de Marcos Renaux)
SOBRE O CORAÇÃO, UM MANIFESTO
(primeiros ensaios)
Dramaturgia - Rafael Guerche
CENA I
O mel da tua boca esparramando até os pés
Eu te bebendo, sugando o seu doce, me alimentando de você
Nossos passos caminhando por uma mesma estrada
Eu me perdendo nos cruzamentos, você se afastando nas encruzilhadas
Nós nos encontrando nos acasos das esquinas
O teu perfume macio tocando a minha pele, exalando em mim meus desejos infantis
Meus olhos comendo os teus cor de jabuticaba com pequenos pontos de cristal clareando a paisagem ao redor
Meu corpo tremendo o frio da tua distancia, você se aproximando e me aquecendo com o seu hálito sabor de saudade
Eu me entregando confuso pras tuas mãos, você me tranquilizando com os teus beijos
Nós dois diante do ato do amor, inocentes em nossas descobertas
Desabotôo o seu casaco, tuas mãos me despindo inteiro
Me perco nos teus abraços, sou sugado pra dentro de você
Os meus dentes vão se prendendo na tua carne sentindo fome sua
Somos dois bailarinos que com passos tímidos vão dançando a paixão
Nossas mãos vão se desprendendo, nos lançamos alguns passos para trás
Você me diz adeus, eu criança uivo em soluços desesperados por te perder
Eu te grito para ficar, os teus pés vão insistindo sozinhos seguir
O meu coração vai seguindo a tua solidão, triste e descrente
Eu vou ficando por aqui, preso a este chão, imóvel, te vendo ir longe
Você me acena lá na última curva do horizonte, eu ainda mais uma vez te chamo
Você não escuta, te vejo linda como uma miragem em meio ao deserto
Te sonho todas as noites, te busco em todas as tardes, te perco em todos os dias
Estou aqui preso a esta janela, vendo a vida lá fora, esperando você voltar. Pra sempre te esperando até uma hora eu me cansar.
CENA II
Você vem sempre aqui?
Eu estou sempre por aqui, já não me recordo mais quanto tempo faz que eu estou aqui, perambulando, daqui pra lá, de lá pra cá, estou sempre aqui, sempre.
Você já perdeu alguma coisa e depois ficou procurando, buscando, procurando? Alguma coisa que tenha alguma importância, que te faça sentido procurar? Eu faço isso todos os dias, fico aqui procurando esta alguma coisa que eu perdi e que já faz tanto tempo que eu não lembro mais o que eu perdi, como eu perdi e pelo o que estou procurando. Eu não sei por que eu ainda estou aqui há tantos dias, há tantos meses, talvez tantos anos. O tempo é uma coisa engraçada, ás vezes ele passa e a gente nem percebe, e ele não passa sempre silencioso, ás vezes faz um estrondo, um imenso barulho, e mesmo assim a gente permanece não percebendo.
Desculpa, eu nem deixei você falar. Você vem sempre aqui?
pausa
Eu sempre te esperei, sabia? Fiquei aqui todo este tempo te esperando. Que bom que você veio. Eu sabia que um dia você ia chegar. Por que você demorou tanto? Acha que foi bom eu ter ficado aqui todo este tempo te esperando? Eu poderia exigir de você, ao menos saber por onde andou, e por que me fez esperar tanto. Poderia, não poderia?
pausa
Que bom que você chegou. O que eu fiz aqui todo este tempo? Fiquei te esperando, e procurando, buscando, procurando o que eu ainda não achei, não encontro, eu não sei o que eu estou procurando, a única coisa que sei é que eu perdi e em algum lugar por aqui, eu fico procurando, buscando, procurando. Eu ficava te esperando, mais agora você chegou, que bom que você veio, não é?
Você trouxe? Eu guardei o seu aqui comigo. E o meu você trouxe? Cadê? Deveria estar com você, não deveria? O seu está aqui comigo, você quer, não quer? O meu deveria estar aqui, eu esperei você e você veio, você trouxe, não trouxe?
Eu estou sempre por aqui, não vai embora, a gente tem todo o tempo do mundo.
Eu devo ter deixado por aqui, eu sei que foi por aqui, mas onde, cadê?
Está um pouco frio. Você sente frio? Fica aqui um pouco, vai passar. Eu estou sempre por aqui.
CENA III
2. Me dá o seu coração?
pausa
1. Eu devo ter deixado o meu coração por aqui, onde sempre descansam os meus rins, os meus pulmões, o meu fígado, as minhas vísceras.
2. Eu cruzei um caminho onde estava um coração, batia fraco, lento, mas vez ou outra tinha espasmos, então pulsava ágil, fazia um enorme barulho, eram muitas as suas batidas, volumosas, estridentes.
Cadê o seu coração?
1. Me dá o meu coração?
2. Eu devo ter deixado o seu coração por lá, abandonado, com frio e triste de solidão.
1. É por isso que o meu peito está vazio, oco. Você abandonou o meu coração. E agora o que eu ponho no lugar, com o que eu preencho este buraco raso entre os meus pulmões?
Você pode trocar este vazio pelo seu coração? Deixa o seu coração morar no vazio dentro de mim?
2. O meu coração pulsa no meu compasso, o meu coração pertence ao meu organismo prisão dos meus sentidos, o meu coração é a célula morta que respira a minha solidão. O meu coração é a minha obrigação. É meu o CORAÇÃO.
Cadê o seu coração?
1. Perdi o meu coração. Quando antes deveria estar nas tuas mãos. Eu não tenho mais o meu coração. Deixei o meu coração no deserto seu, na tempestade sua, no escuro da sua noite. O que eu posso te dar? O meu vazio é o que tenho para te dar. Deixa o meu vazio morar no teu coração?
CENA IV
2. Você lembra?
pausa
Lembra?
pausa
1. Era noite, e nós estávamos lá. Não havia mais ninguém por perto, é o que ainda consigo lembrar. Éramos eu e você, apenas. E um silêncio, disso eu também me lembro, talvez o que ainda é mais vivo em minhas lembranças, aquele silêncio profundo como aquela noite quieta.
Faz muito tempo?
2. Não sei, parece que sim.
1. Então nossos olhares se cruzaram, sentia que as nossas mãos se buscavam, uma a outra, o nossos dedos e pés confusos dançavam uma dança que nos levava para a direção um do outro. Nós dois seguíamos, ainda que relutantes, tímidos, apreensivos, tementes, talvez, ao nosso encontro.
2. E então nos encontramos. E era noite, noite como agora ainda é.
Por que você foi embora depois? Eu ainda fiquei ali por muito tempo, sabia?
1. Por que eu deveria ficar, se sabia que logo partiria? Mais cedo ou mais tarde, não queria ficar ali para sempre. Você quis?
2. Não, acho que não. Só queria que não tivesse ido e me deixado lá sozinho.
1. Agora eu preciso ir.
2. Por que? Fica, mais um pouco, não vai demorar tanto.
1. Não posso. Não vou ficar, tenho que ir.
2. Você volta?
1. Quando?
2. Não sei. Quando quiser.
1. Não sei se volto.
2. Por que?
1. Desculpa, eu preciso ir.
2. Posso ir também?
1. Onde?
2. Com você. Onde você vai?
1. Não. Não pode. Não vou á lugar nenhum.
2. Você não volta, eu sei que não vai voltar.
1. Tchau.
2. Adeus.
CENA V
1. Deixa eu te abraçar?
2. Não.
1. Eu só preciso de um abraço.
2. Você precisa, não eu. É você quem quer, eu não quero.
1. Você me ama?
2. Não.
1. Mas você disse que me amava, não disse?
2. Não, não disse. Você inventou tudo isso, eu não faço parte deste seu imaginário. Sinto amor sim, mas não por você. Eu amo minha mãe, minhas irmãs, meus amigos, as pessoas próximas a mim, você eu não amo, talvez um dia, mas agora não.
1. Eu só queria poder ficar junto de você, te abraçar, só isso.
2. Eu não posso te ajudar. Eu já disse que não te amo. Eu te dei o coração e você me feriu, com o teu olhar, com a tua agressividade, com o seu jeito de ser.
1.Os teus olhos e tua agressividade também me feriram. Eu só vim pra dizer que te amo, pra te dar um abraço. Mas é sempre não.
pausa
Vou embora, não volto mais aqui.
2. Não precisa decidir assim, talvez um dia eu consiga te amar, não precisa ser pra sempre, decidir que não vai mais voltar, que eu não faço mais parte da sua vida.
1. Eu preciso ir. (abraça o outro, é empurrado)
2. Você precisa deste abraço não eu, eu não te amo.
(O 1 sai)
Não vai embora.
CENA VI
1. Eu desejo me desprender das amarras, correntes e mordaças. Vou me libertar da prisão que é estar junto de você. Sou sua escrava, seu colo para desafogar as tristezas, sua esposa, sua senhora, sua mulher. Sempre digo sim aos seus caprichos, sempre estou de acordo, tenho que estar de acordo com tudo o que faz e com cada palavra que diz. Estou abrindo as janelas desta casa para deixar outros ares atravessar as nossas vidas, arrombo a porta para me libertar desta condição e do nosso passado. Quero uma vez, ao menos uma única vez, desrespeitar o homem que me domina, ser imoral, agir como uma prostituta libertina. Sim, quero ser uma PROSTITUTA LIBERTINA e te trair, trair a cama, a mesa, o fogão, a cadeira, a sala, o quarto, o seu rosto, suas mãos e pernas, o seu peito. Saia da porta, destranque o portão, me dê passagem. Vou pisar sobre o teu corpo e cuspir nas suas mentiras de amor. Com minhas mãos vou estraçalhar as cartas, os discos e as flores de um romance que nunca existiu. Não me peça ou insista para ficar. Não. Eu não vou permanecer envolvida pelos teus braços, teus abraços me sufocam, me assassinam. Não. Eu não vou ficar.
Não me olhe como se eu fosse uma louca que em poucos minutos vai desistir e recuar. Eu não vou voltar para esta casa e permanecer sendo sua escrava. Não me toque, não me beije, vou morder os seus lábios e me alimentar do seu sangue, quero estampar em seu rosto minha cicatriz e em seu coração ferir com minha dor.
CENA VII
Eu vim te buscar meu coração.
Cadê você?
Você deveria estar por aqui.
Em algum lugar aqui.
Eu ainda te escuto.
Você está vivo meu coração.
Bate mais alto! Eu vou te encontrar.
Eu te quero livre meu coração.
Livre para voar, dançar, gritar.
Vem meu coração, que eu estou te querendo.
Que eu te esperei por tanto tempo.
Vem pra mim meu coração.
CENA VIII
2. Quanto custa o seu coração?
1. Custa o ar que ainda respiro.
2. Quanto custa o ar que respira?
1. Custa os meus pulmões.
2. Quanto custa os seus pulmões inflamados pelo ar que respira?
1. Custa o quanto eu permaneço, o meu existir insuficiente.
2. Quanto custa a tua permanência, a tua existência insuficiente, dilatadas pelo ar que habita os seus pulmões?
1. Nada. Nada vale nada, é o quanto custa, é o preço: NADA.
2. Portanto, quanto custa o seu coração?
1. NADA CUSTA O MEU CORAÇÃO.
2. E por que então o procuras? Por que rasteja entre os escombros, destroços e lixos do fim de uma revolução? Por que tateia o escuro feito um cego desenganado pela escuridão? SE NADA CUSTA O SEU CORAÇÃO.
1. Não é o meu coração que procuro, é o seu esconderijo. É o seu prazer indelicado. É uma morte digna para o meu corpo cansado.
Cadê o meu coração?
2. Eu não tenho o seu coração.
1. Por que o meu coração?
2. Nunca senti o teu coração.
1. Qual o peso do meu coração?
2. Não provei o gosto do teu coração.
1. Me dá o meu coração?
2. Não.
É meu o teu coração.
CENA XI
O coração?
Cadê o meu coração?
2. Das minhas muitas manias, esta de achar que você é última sobre a face da terra, a única paisagem em que repousam meus olhos.
1. O meu coração não é um brinquedo seu, não é o seu passa tempo, seu infantil e cruel divertimento. O meu coração não é o seu passarinho de estimação para você prender em sua gaiola prisão.
2. Já não tenho mais meus versos raros, minhas rimas secas e escassas, e já não encontro forma para compor os meus desamores, os teus desafetos, a tua indiferença. Eu sou um invisível para os olhos teus.
1. A regra deve ser subvertida com a exceção. Eu subverto o meu coração. Eu subverto a vontade tua pelo meu coração. Eu subverto a tua vontade meu coração.
Cadê o meu coração? Perdi na guerra o meu coração, na fome pela miséria, em meio a explosão de Hiroshima, perdi num assalto o meu coração, no medo, na dúvida, na incerteza, foi no desacordo que eu perdi o meu coração, perdi o meu coração quando você apareceu, e fez do meu coração a tua propriedade privada, o teu consumo, o teu contrabando, a tua máquina, quando cegou os meus olhos para não enxergar covarde desapropriação.
Queria ser um rebelde e trazer de volta o meu coração.
2. Eu perdi o seu coração em meio a revolução, enquanto os gritos, os corpos, as dores, os abutres, me atravessavam e dançavam sobre a minha cabeça um ballet descontínuo e descompassado. Eu perdi o seu coração em meio a necessidade de liberdade, no ato de um voo abismal. Eu perdi o seu coração em meio as barricadas e comunas, entre os farrapos, o seu coração mergulhado em poça de sangue, afundando, submergindo, cozinhando no ácido dos gases letais dos campos de concentração. Eu perdi o seu coração na extinção da paz, o seu coração guerra, o seu coração destruição, o seu coração desesperança, o seu humano coração extinto.
1. O meu coração paixão, está despedaçado.
O meu coração amigo, está descrente.
O meu coração filho, está órfão.
O meu coração mulher, está solteiro.
O meu coração amante, está louco.
A máquina coração que antes funcionava com os seus mecânicos batimentos, falhou, está fora do ar, desconectado.
2. Os meus dentes presos nas tuas cochas
Mordo os teus lábios, como a tua boca
Com a ponta da língua, cuspo o teu sangue
Sugo o sal do teu suor
Me desmancho no teu gozo
E mais fundo ainda procuro o teu coração
E não encontro. Não encontro o teu coração.
CENA X
1e2
Eu toquei os seus cabelos.
Eu pousei os meus olhos nos seus.
Eu fiquei com o seu cheiro.
Eu busquei o seu peito.
E o coração?
Você me pediu o coração, eu te dei. Entreguei nas tuas mãos.
Eu perdi o seu coração. Eu devo ter deixado em algum lugar por aqui.
Ele ainda bate, eu posso escutar. Você escuta?
Só o silêncio.
É o silêncio do meu coração, abandonado ele ficou mudo, mas ainda bate, ele vive por aqui em algum lugar.
Você foi embora.
Eu me distanciei de você.
O que você quer ?
Só quero o meu coração. O coração que você perdeu, maltratou, machucou. Quero cuidar do meu coração.
Era noite. Noite.
O meu coração limpo aos seus pés, batendo por você.
Eu toquei os seus cabelos. Fiquei com seu cheiro. Busquei o seu peito, o seu rosto, a sua boca.
Eu disse que te amava. Você me disse: “Não”. Que não poderia ser.
Decidi que não ficaria.
Eu disse adeus. Você lembra? Eu disse adeus e você disse: “Não. Fica.”
Eu não podia mais ficar.
Eu te amava, tentei te abraçar. Eu me aproximei, você me empurrou, pra longe daqui e de você.
Eu já não lembrava mais disso, eu tentei apagar dos meus pensamentos. Eu quis te esquecer.
Acontece que eu deixei por aqui, em algum lugar o meu coração.
Voltei pra buscar o meu coração. Pra buscar o coração. Nos teus pés.
Cadê o meu coração?
O coração limpo. O meu coração. Que não encontro.
Me dá o coração?
CENA XI
A vida também é feita de pequenos instantes repletos de felicidade. Me deu vontade de ir embora daqui pra ver no dá. Me arriscar riscando o chão sem direção até chegar ao mar, porque lá sim deve ser o meu lugar.
Você vem comigo?
Porque eu vou mesmo se não vier, mas se vier... vamos juntos. Está cantando aquela canção... aquela, lembra? É a nossa primeira canção, que ouvimos no nosso primeiro encontro, eu e você de mãos dadas e entregue aos nossos beijos sedentos de amor, faz tanto tempo, não é?
pausa
Eu encontrei... encontrei você meu coração seguindo os meus passos até o mar. Te encontrei aqui pra te perder mais uma vez, para te perder de mim pra sempre e te buscar todas ás vezes que for preciso. Dá a tua mão? Vem? Vem comigo meu coração.
UM MANIFESTO
PARA
hamlet e ulisses
De quando me tornei o Ser que não era
Sendo o Ser que sou
em memória de Antonin Artaud
Dramaturgia – Rafael Guerche
CENA I
ESPECTRO DO REI HAMLET
O Homem mata o Homem
O Homem assalta o poder do Homem
O Homem se alimenta da fraqueza do Homem
Mais podre é um corpo consumado pela morte
Devorado sob a terra pelos mais perversos VERMES
Ou o caráter HUMANO ?
Eu HOMEM
Faleço nos poucos segundos que pertencem a minha EXISTÊNCIA
Das entranhas da noite lanço um grito
Quem entre vós pode me ouvir?
Estou desintegrando
Com o suco do meu sangue
Escorrem o meu fígado
Os meus rins
O meu estômago
Os meus pulmões
E o meu coração
Sou os podres pedaços de uma CONDIÇÃO-VIDA que chegou ao seu fim.
O ESPECTRO DO REI HAMLET permanece em cena durante a fala de HORÁCIO
HORÁCIO
Quem está aí?
O que desejas?
Qual o espectro que caminha por estas terras?
Por que trazes ás vestes e a espada de nosso MORTO REI?
Respondei-me ó espírito andante
Porque atormentas nossas noites e preocupas nossos sonos?
Pobre Dinamarca, padeces dos pecados cometidos por vossa nobreza
E aqui estou em guarda, armado e protegido pelo escudo da justiça
Olho o horizonte para além das muralhas deste reino
E como a águia me preparo para atacar a caça
O inimigo se aproxima e o nosso exército marcha rumo ao confronto
As noites são frias e o meu esqueleto treme
Quem está aí?
O que desejas?
Qual o espectro que caminha por estas terras?
CENA II
INTÉRPRETE DE ulisses
Perguntaram quem sou? Respondi: eu sou ulisses. ulisses de onde? Insistiram.
ulisses de Ítaca. Sim, ainda pertenço a Ítaca. Mas você não é um estrangeiro? Estrangeiro eu? Nada poderia doer tanto em meu peito. ulisses o estrangeiro.
Eu sou ulisses retornado á Ítaca. A esta Ítaca desigual á tudo o que me foi antes, desconhecida e distante em minhas lembranças e passado.
Vejo asfalto onde antes era terra. A paisagem engolida por monumentos, arranha-céus. Estou em meio á tudo isso. Neste labirinto não me encontro. Penélope amada em qual torre está presa? Grita, para que aqui debaixo eu possa te escutar. Vejo antenas riscando os céus. Satélites me perseguem, marcam meu rastro. Eu que antes fui herói desta terra, caminho desconhecido. Perguntaram quem sou. Como, quem sou? Sou eu ulisses, não se lembram? Sou eu Ítaca, o seu herói retornado depois de cruzar por tantos oceanos e terras além mar. Isto não te vale nada? Não me reconheces? Não sabe quem sou? Qual o destino de uma terra que apaga das linhas de sua história os seus heróis?
Eu ulisses retornado a Ítaca. Sem coração, caminho sobre os cadáveres do meu passado. Procuro o meu coração. Não encontro. Alguém viu o meu coração? Eu deixei aqui, por aqui, em algum lugar, eu me lembro. Eu voltei pra buscar o meu coração. Cadê o coração? Eu voltei pra te buscar meu coração!
Estou cercado por muros. Altos muros.
Muro prisão. Muro eletrochoque. Muro que me separa e cerca na solidão. Eu quero derrubar tijolo por tijolo destes muros e atravessar as suas demarcações, os seus limites.
Na minha ausência fostes transformada nesta ilha segregada Ítaca. Perguntei sobre o coração. Algúem escuta? Escuta, este silêncio é a ausência de um coração devorado na crueldade da evolução.
Perguntaram quem sou. Este sou eu, o que de mim restou. Um homem transformado em máquina, sucata, parafuso, pequeno, menor, insignificante.
INTÉRPRETE DE hamlet
Eu era HAMLET. Atuei em muitos palcos, representei papéis em muitos teatros. O meu drama não interessa mais, a minha trajetória é um fracasso. Abriram as jaulas da miserável prisão e libertaram os antigos loucos que como ratos se multiplicam nas suas depressões solitárias. Padeço pela falta de um coração.
Eu vim pra te desenterrar Ofélia. Você que me tirou o coração, que não pediu licença.
O meu coração limpo aos seus pés, batendo por você.
Eu toquei os seus cabelos. Fiquei com seu cheiro. Busquei o seu peito, o seu rosto, a sua boca.
Eu disse que te amava. Você me disse: “Não”. Que não poderia ser.
Decidi que não ficaria.
Eu disse adeus. Você lembra? Eu disse adeus e você disse: “Não, fica.”
Eu não podia mais ficar.
Eu te amava, tentei te abraçar. Eu me aproximei, você me empurrou, pra longe daqui e de você.
Eu já não lembrava mais disso, eu tentei apagar dos meus pensamentos. Eu quis te esquecer.
Acontece que eu deixei por aqui, em algum lugar o meu coração.
Voltei pra buscar o meu coração. Pra buscar o coração. Nos teus pés.
Cadê o coração?
O coração limpo. O meu coração, que não encontro.
Me dá o coração?
CENA III
O INTERROGATÓRIO DE ulisses
UM INTÉRPRETE
Conta ulisses suas aventuras, QUANDO HOMEM, conta os seus conhecimentos sobre a guerra, de quando aprendeu a lutar e ser visto pelos teus semelhantes como um sagaz vitorioso, conta o seu destino engendrado pelos deuses, conta a tua sina quando um viajante em mares, terras e vidas estrangeiras, conta a sua partida e chegada a esta Ítaca.
O INTERROGATÓRIO DE ulisses
UM INTERROGADOR
Nome?
INTÉRPRETE DE ulisses
ulisses.
UM INTERROGADOR
Nome?
INTÉRPRETE DE ulisses
ulisses.
UM INTERROGADOR
Nome? Lugar?
INTÉRPRETE DE ulisses
ulisses de Ítaca.
UM INTERROGADOR
Ítaca. Onde?
INTÉRPRETE DE ulisses
Ítaca aqui.
UM INTERROGADOR
Aqui não é Ítaca. Nome e lugar?
INTÉRPRETE DE ulisses
Qual lugar é aqui? Se ainda tenho memória, foi deste porto aqui que eu parti. Sim é desta Ítaca que falo, desta terra que deixei, e onde agora estou sendo interrogado. Por que tenho que responder a este julgamento? A que estou sendo condenado? Não entendo, talvez eu esteja representando a figura de um réu acusado por ser estrangeiro em sua própria terra, mas apenas desconfio disso, a minha falta de certezas é o que me desconforta diante da sua autoridade Senhor Interrogador.
UM INTERROGADOR
Basta. Parece um ator medíocre dizendo um texto qualquer, fraco em suas intenções, jogando palavras ao vento. Já não convences mais. O papel que representa já não vale mais o ingresso a ser pago para acompanharmos tão indesejável espetáculo.
Senhor ulisses de Ítaca. É só o que você conseguiu ser. Trágico destino o de um homem que a vida inteira caminhou, navegou sem rumo e que em seu fim não encontrou uma digna cova, um glorioso buraco para ser enterrado, para descansar deste mundo habitado pelos vivos.
Nome? Lugar? Vamos responda com o pouco de verdade que ainda lhe resta. Conte a esta gente o seu depoimento “ó estrangeiro”.
CENA IV
OFÉLIA E HORÁCIO
O Indivíduo precisa ser des - civilizado
O Homem é constituído de suas contradições
Estas contradições precisam ser expostas
Tal como a ferida deve ser tocada para transgredirmos a dor
A Demagogia/Argumentação - Opinião/Afirmação/Opressão: o câncer da modernidade
Quantas são as mentiras que contamos e nos esforçamos para convencer os nossos pares na busca escravista de negarmos a nós mesmos o que somos?
Simulamos para o mundo porque acreditamos que pertencer a imobilidade e estagnação é mais confortável diante da negação e aversão a que estão condenados os marginais
Tememos a marginalidade e louvamos a sistematização assassina da vida
Olhemos para nossa história e reconheçamos todos os assassinatos cometidos pelas nossas próprias mãos
A igreja assassina, a família assassina, o sexo assassino, o governo assassino, o preconceito e os costumes assassinos
Matamos e enterramos na lama a liberdade, não contentes ainda, defecamos sobre o seu túmulo
A máscara deveria ser a ritualização dos nossos eus
E não o nosso esconderijo
O Ator é sobretudo o ser humano nu
O gangrena desenfaixado e exposto
A peste agressiva, violenta e consumadora
O hipócrita da não hipocrisia humana
O escárnio não silencioso e agudo
É preciso Representar a sociedade hamlet!
ESPECTRO DO REI HAMLET
Representa a sociedade hamlet!
Personifica o Homem!
Simula a vida!
CENA V
OFÉLIA
Hamlet, meu desejo, meu delírio
Meu HOMEM
Eu te amo, MAS NÃO POSSO
(INTÉRPRETE DE hamlet fala no mesmo instante que Ofélia)
Eu te amo, MAS NÃO POSSO
Não posso tocá-lo
Não posso sentir os teus lábios
Não posso consumir o teu sexo
Não posso ser tua mulher
E minha vontade é servi-lo
Ser tua ama
Preparar tua cama
E desposar-me
Eu OFÉLIA fruto da loucura do amor
Eu OFÉLIA um corpo morto errante e vagabundo
E tudo o que eu queria era ser a tua esposa tua vadia tua puta.
CENA VI
INTÉRPRETE DE hamlet
EU hamlet ATOR
NA CARNIFICINA DO TEATRO SOCIEDADE
EVOCO AS VOZES DOS MORTOS, VAGABUNDOS E MISERÁVEIS
É PRECISO EMPUNHAR NOSSAS ESPADAS E LEVANTAR NOSSOS ESCUDOS
ATUAR! ATUAR! ATUAR!
AGIR, CALAI-VOS HOMENS E AGIR!
EU NEGRO ESPANCADO NA GARAGEM DE UM SUPERMERCADO
EU MENDIGO INCENDIADO NAS RUAS
EU UMA CRIANÇA DE TRÊS ANOS ASSASSINADA PELO PRÓPRIO PAI, QUANDO ESTE ESTAVA CONVENCIDO QUE EU SEU FILHO APRESENTAVA TENDÊNCIAS HOMOSSEXUAIS
EU PROSTITUTA ASSASSINADA ENQUANTO EXERÇO O MEU OFÍCIO
CRIANÇAS SÃO EXPLORADAS NA INDÚSTRIA DO CRIME
BRUXAS SÃO QUEIMADAS NAS FOGUEIRAS MEDIEVAIS
HOMENS DO GOVERNO PRIVATIZAM E ABUSAM DO PODER
AGITADORES SÃO TORTURADOS
AS VERDADES SÃO ABSOLUTAS
QUEM PODE JULGAR?
CONDENAM OS VILÕES ASSASSINOS, MAS COLOCAM NA GUILHOTINA A CABEÇA DA HUMANIDADE
“EXISTE ALGO DE PODRE NO REINO DA DINAMARCA”
ATUAR! ATUAR! ATUAR!
AGIR, CALAI-VOS HOMENS E AGIR!
INTÉPRETES
REPRESENTA A SOCIEDADE hamlet!
CENA VII
INTÉRPRETE DE HORÁCIO
hamlet desenterra o que está podre sob o chão da Dinamarca
Desmascara o assassino de teu pai, o rei deste povo
A morte caminha de mãos dadas com a justiça
É preciso cravar a espada no peito daqueles que conspiram contra este país.
O ESPECTRO DO REI HAMLET
O inimigo se aproxima hamlet, ele já não é mais um personagem distante. É preciso decidir. Quem tem o poder é quem decide. Quem tem a coroa e empunha a espada da justiça deve ser o autor da história de um povo, de uma nação.
Invadem a Dinamarca
Quebram
Incendeiam
Estilhaçam
Assassinam
Impiedosamente abrem o caminho até o seu trono.
CENA VIII
O INTÉRPRETE DE hamlet
hamlet, meu príncipe
Se soubesse hamlet o quanto eu te procurei
O quanto eu te quiz, e tudo o que eu fiz para ter você aqui, comigo
Eu te procurei hamlet no silêncio e no escuro de um teatro vazio
Nas minhas leituras equivocadas e acertivas da tua história
Eu te procurei em reinos obscurecidos pela crueldade
Na violência entre os fracos eu busquei o teu escudo, a tua espada
Eu te procurei longe daqui e próximo de mim
Nas noites insones, nas manhãs tempestivas, eu rastejava a tua procura meu sonhado príncipe
Eu cavei um buraco largo e profundo na cavidade do meu ser para ver se te encontrava
Eu te busquei em cada gesto ensaiado, em cada inflexão da voz e nas muitas posições cênicas que construi e ocupei
Eu sempre ali na tua espera, pronto para te achar, te encontrar, te manifestar
Eu me vesti com as tuas vestes, me calcei com os teus sapatos, te esperei, te esperei, meu hamlet
Eu te procurei nas muitas verdades desmentidas no acaso
Eu acreditei, sim eu acreditei, que você estava dentro
E Narciso me lancei para o lago da vaidade que sou, e você não estava lá hamlet
Você não estava nos muitos lugares que eu te procurei
Em meio a praça pública, nos submundos marginalizados
No encontro com a puta, com o medo, você não estava
Você não estava no paraíso que fui te buscar, quando acreditei que poderia ser o meu santo, não hamlet, nós não somos santos, nem eu, nem você, e me negaram o paraíso
Eu tenho te procurado nos versos da minha poesia, na melodia da minha música, na representação do meu teatro, e não tenho te encontrado hamlet
Eu tenho te procurado nos meus surtos de neurose,
Na suspensão tranquila do meu ser
No meu repouso
E não tenho te encontrado
Eu cruzei as terras e os mares da Europa, eu desbravei a Dinamarca, as suas glórias e frustrações, e não te encontrei
Ouve hamlet, eu tenho te procurado desde sempre
E agora que eu, o teu INTÉRPRETE te encontro
O cenário em que estamos não é o desejado
E ainda estamos distantes, estamos mais distantes ainda
Eu ofelizado na tua presença convoco o teu amor
Em meio a esta multidão atravessada por tiros, esquartejada pelas leis, oprimida pela ditadura
Me calam quando são as tuas palavras que eu digo
Me prendem quando são os teus gestos que eu articulo
Me matam quando sou EU FUNDIDO Á VOCÊ hamlet.
REPRESENTA A SOCIEDADE hamlet!
ATUA HAMLET NESTE TEATRO SEU!
hamlet ?
LOGO SE VÊ QUE JÁ NÃO É MAIS UM GRANDE HOMEM.
ESTES NÃO SÃO TEMPOS DE GRANDES HOMENS, NÃO É hamlet?
ALGUNS TEXTOS (REFERÊNCIAS) PARA LEITURA
Escola de Frankfurt - Walter Benjamin
Experiência e pobreza
1933
Walter Benjamin
Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: "Ele é muito jovem, em breve poderá compreender". Ou: "Um dia ainda compreenderá". Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?
Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano.
Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem. A angustiante riqueza de idéias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas, com a renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarismo e da gnose, da escolástica e do espiritualismo, é o reverso dessa miséria. Porque não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim uma galvanização. Pensemos nos esplêndidos quadros de Ensor, nos quais uma grande fantasmagoria enche as ruas das metrópoles: pequeno-burgueses com fantasias canavalescas, máscaras disformes brancas de farinha, coroas de folha de estanho, rodopiam imprevisivelmente ao longo das ruas. Esses quadros são talvez a cópia da Renascença terrível e caótica na qual tantos depositam suas esperanças. Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie.
Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacáveis que operaram a partir de uma tábula rasa. Queriam uma prancheta: foram construtores. A essa estirpe de construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia numa única certeza — penso, logo existo — e dela partiu. Também Einstein foi um construtor assim, que subitamente perdeu o interesse por todo o universo da física, exceto por um único problema — uma pequena discrepância entre as equações de Newton e as observações astronômicas. Os artistas tinham em mente essa mesma preocupação de começar do principio quando se inspiravam na matemática e reconstruíam o mundo, como os cubistas, a partir de formas estereométricas, ou quando, como Klee, se inspiravam nos engenheiros. Pois as figuras de Klee são por assim dizer desenhadas na prancheta, e, assim como num bom automóvel a própria carroceria obedece à necessidade interna do motor, a expressão fisionômica dessas figuras obedece ao que está dentro. Ao que está dentro, e não à interioridade: é por isso que elas são bárbaras.
Algumas das melhores cabeças já começaram a ajustar-se a essas coisas. Sua característica é uma desilusão radical com o século e ao mesmo tempo uma total fidelidade a esse século. Pouco importa se é o poeta Bert Brecht afirmando que o comunismo não é a repartição mais justa da riqueza, mas da pobreza, ou se é o precursor da moderna arquitetura, Adolf Loos, afirmando: "Só escrevo para pessoas dotadas de uma sensibilidade moderna.. Não escrevo para os nostálgicos da Renascença ou do Rococó". Tanto um pintor complexo como Paul Klee quanto um arquiteto programático como Loos rejeitam a imagem do homem tradicional, solene, nobre, adornado com todas as oferendas do passado, para dirigir-se ao contemporâneo nu, deitado como um recém-nascido nas fraldas sujas de nossa época. Ninguém o saudou tão alegre e risonhamente como Paul Scheerbart. Ele escreveu romances que de longe se parecem com os de Júlio Verne, mas ao contrário de Verne, que se limita a catapultar interminavelmente no espaço, nos veículos mais fantásticos, pequenos rentiers ingleses ou franceses, Scheerbart se interessa pela questão de como nossos telescópios, aviões e foguetes transformam os homens antigos em criaturas inteiramente novas, dignas de serem vistas e amadas. De resto, essas criaturas também falam uma língua inteiramente nova. Decisiva, nessa linguagem, é a dimensão arbitrária e construtiva, em contraste com a dimensão orgânica. É esse o aspecto inconfundível na linguagem dos homens de Scheerbart, ou melhor, da sua "gente"; pois tal linguagem recusa qualquer semelhança com o humano, princípio fundamental do humanismo. Mesmo em seus nomes próprios: os personagens do seu livro, intitulado Lesabéndio, segundo o nome do seu herói, chamam-se Peka, Labu, Sofanti e outros do mesmo gênero. Também os russos dão aos seus filhos nomes "desumanizados": são nomes como Outubro, aludindo à Revolução, ou Pjatiletka, aludindo ao Plano Qüinqüenal, ou Aviachim, aludindo a uma companhia de aviação. Nenhuma renovação técnica da língua, mas sua mobilização a serviço da luta ou do trabalho e, em todo caso, a serviço da transformação da realidade, e não da sua descrição.
Mas, para voltarmos a Scheerbart: ele atribui a maior importância à tarefa de hospedar sua "gente", e os co-cidadãos, modelados à sua imagem, em acomodações adequadas à sua condição social, em casas de vidro, ajustáveis e móveis, tais como as construídas, no meio tempo, por Loos e Le Corbusier. Não é por acaso que o vidro é um material tão duro e tão liso, no qual nada se fixa. É também um material frio e sóbrio. As coisas de vidro não têm nenhuma aura. O vidro é em geral o inimigo do mistério. E também o inimigo da propriedade. O grande romancista André Gide disse certa vez: cada coisa que possuo se torna opaca para mim. Será que homens como Scheerbart sonham com edifícios de vidro, porque professam uma nova pobreza? Mas uma comparação talvez seja aqui mais útil que qualquer teoria. Se entrarmos num quarto burguês dos anos oitenta, apesar de todo o "aconchego" que ele irradia, talvez a impressão mais forte que ele produz se exprima na frase: "Não tens nada a fazer aqui". Não temos nada a fazer ali porque não há nesse espaço um único ponto em que seu habitante não tivesse deixado seus vestígios. Esses vestígios são os bibelôs sobre as prateleiras, as franjas ao pé das poltronas, as cortinas transparentes atrás das janelas, o guarda-fogo diante da lareira. Uma bela frase de Brecht pode ajudar-nos a compreender o que está em jogo: "Apaguem os rastros!", diz o estribilho do primeiro poema da Cartilha para os citadinos. Essa atitude é a oposta da que é determinada pelo hábito, num salão burguês. Nele, o "interior" obriga o habitante a adquirir o máximo possível de hábitos, que se ajustam melhor a esse interior que a ele próprio. Isso pode ser compreendido por qualquer pessoa que se lembra ainda da indignação grotesca que acometia o ocupante desses espaços de pelúcia quando algum objeto da sua casa se quebrava. Mesmo seu modo de encolerizar-se — e essa emoção, que começa a extinguir-se, era manipulada com grande virtuosismo — era antes de mais nada a reação de um homem cujos "vestígios sobre a terra" estavam sendo abolidos. Tudo isso foi eliminado por Scheerbart com seu vidro e pelo Bauhaus com seu aço: eles criaram espaços em que é difícil deixar rastros. "Pelo que foi dito", explicou Scheerbart há vinte anos, "podemos falar de uma cultura de vidro. O novo ambiente de vidro mudará completamente os homens. Deve-se apenas esperar que a nova cultura de vidro não encontre muitos adversários."
Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles "devoraram" tudo, a "cultura" e os "homens", e ficaram saciados e exaustos. "Vocês estão todos tão cansados — e tudo porque não concentraram todos os seus pensamentos num plano totalmente simples mas absolutamente grandioso." Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o sonho compense a tristeza e o desânimo do dia, realizando a existência inteiramente simples e absolutamente grandiosa que não pode ser realizada durante o dia, por falta de forças. A existência do camundongo Mickey é um desses sonhos do homem contemporâneo. É uma existência cheia de milagres, que não somente superam os milagres técnicos como zombam deles. Pois o mais extraordinário neles é que todos, sem qualquer improvisadamente, saem do corpo do camundongo Mickey, dos seus aliados e perseguidores, dos móveis mais cotidianos, das árvores, nuvens e lagos. A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se unificam completamente, e aos olhos das pessoas, fatigadas com as complicações infinitas da vida diária e que vêem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga numa interminável perspectiva de meios, surge uma existência que se basta a si mesma, em cada episódio, do modo mais simples e mais cômodo, e na qual um automóvel não pesa mais que um chapéu de palha, e uma fruta na árvore se arredonda como a gôndola de um balão.
Podemos agora tomar distância para avaliar o conjunto. Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do "atual". A crise econômica está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima guerra. A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno grupo dos poderosos, que sabe Deus não são mais humanos que os outros; na maioria bárbaros, mas não no bom sentido. Porém os outros precisam instalar-se, de novo e com poucos meios. São solidários dos homens que fizeram do novo uma coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia. Em seus edifícios, quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali um som bárbaro. Perfeito. No meio tempo, possa o indivíduo dar um pouco de humanidade àquela massa, que um dia talvez retribua com juros e com os juros dos juros.
Tradução de Sérgio Paulo Rouanet
Ensaio obtido em Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-119.
20 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19
Notas sobre a experiência e o saber de
experiência*
Jorge Larrosa Bondía
Universidade de Barcelona, Espanha
Tradução de João Wanderley Geraldi
Universidade Estadual de Campinas, Departamento de Lingüística
No combate entre você e o mundo, prefira o mundo.
Franz Kafka
Costuma-se pensar a educação do ponto de vista
da relação entre a ciência e a técnica ou, às vezes, do
ponto de vista da relação entre teoria e prática. Se o
par ciência/técnica remete a uma perspectiva positiva
e retificadora, o par teoria/prática remete sobretudo a
uma perspectiva política e crítica. De fato, somente
nesta última perspectiva tem sentido a palavra “reflexão”
e expressões como “reflexão crítica”, “reflexão
sobre prática ou não prática”, “reflexão emancipadora”
etc. Se na primeira alternativa as pessoas que trabalham
em educação são concebidas como sujeitos
técnicos que aplicam com maior ou menor eficácia as
diversas tecnologias pedagógicas produzidas pelos
cientistas, pelos técnicos e pelos especialistas, na segunda
alternativa estas mesmas pessoas aparecem
como sujeitos críticos que, armados de distintas estratégias
reflexivas, se comprometem, com maior ou
menor êxito, com práticas educativas concebidas na
maioria das vezes sob uma perspectiva política. Tudo
isso é suficientemente conhecido, posto que nas últimas
décadas o campo pedagógico tem estado separado
entre os chamados técnicos e os chamados críticos,
entre os partidários da educação como ciência
aplicada e os partidários da educação como práxis
política, e não vou retomar a discussão.
O que vou lhes propor aqui é que exploremos
juntos outra possibilidade, digamos que mais existencial
(sem ser existencialista) e mais estética (sem ser
esteticista), a saber, pensar a educação a partir do par
experiência/sentido. O que vou fazer em seguida é
sugerir certo significado para estas duas palavras em
distintos contextos, e depois vocês me dirão como isto
lhes soa. O que vou fazer é, simplesmente, explorar
algumas palavras e tratar de compartilhá-las.
E isto a partir da convicção de que as palavras
* Conferência proferida no I Seminário Internacional de
Educação de Campinas, traduzida e publicada, em julho de 2001,
por Leituras SME; Textos-subsídios ao trabalho pedagógico das
unidades da Rede Municipal de Educação de Campinas/FUMEC.
A Comissão Editorial agradece Corinta Grisolia Geraldi, responsável
por Leituras SME, a autorização para sua publicação na Revista
Brasileira de Educação.
Notas sobre a experiência e o saber de experiência
Revista Brasileira de Educação 21
produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam
como potentes mecanismos de subjetivação.
Eu creio no poder das palavras, na força das palavras,
creio que fazemos coisas com as palavras e, também,
que as palavras fazem coisas conosco. As palavras
determinam nosso pensamento porque não pensamos
com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a
partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas
a partir de nossas palavras. E pensar não é somente
“raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos
tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar
sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o
sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as
palavras. E, portanto, também tem a ver com as palavras
o modo como nos colocamos diante de nós mesmos,
diante dos outros e diante do mundo em que vivemos.
E o modo como agimos em relação a tudo isso.
Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o homem
como zôon lógon échon. A tradução desta expressão,
porém, é muito mais “vivente dotado de palavra” do
que “animal dotado de razão” ou “animal racional”.
Se há uma tradução que realmente trai, no pior sentido
da palavra, é justamente essa de traduzir logos por
ratio. E a transformação de zôon, vivente, em animal.
O homem é um vivente com palavra. E isto não significa
que o homem tenha a palavra ou a linguagem como
uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas
que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra,
que todo humano tem a ver com a palavra, se dá
em palavra, está tecido de palavras, que o modo de
viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na
palavra e como palavra. Por isso, atividades como considerar
as palavras, criticar as palavras, eleger as palavras,
cuidar das palavras, inventar palavras, jogar com
as palavras, impor palavras, proibir palavras, transformar
palavras etc. não são atividades ocas ou vazias,
não são mero palavrório. Quando fazemos coisas com
as palavras, do que se trata é de como damos sentido
ao que somos e ao que nos acontece, de como
correlacionamos as palavras e as coisas, de como nomeamos
o que vemos ou o que sentimos e de como
vemos ou sentimos o que nomeamos.
Nomear o que fazemos, em educação ou em qualquer
outro lugar, como técnica aplicada, como práxis
reflexiva ou como experiência dotada de sentido, não
é somente uma questão terminológica. As palavras
com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o
que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos
são mais do que simplesmente palavras. E, por isso,
as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo controle
das palavras, pela imposição de certas palavras e
pelo silenciamento ou desativação de outras palavras
são lutas em que se joga algo mais do que simplesmente
palavras, algo mais que somente palavras.
1. Começarei com a palavra experiência. Poderíamos
dizer, de início, que a experiência é, em espanhol,
“o que nos passa”. Em português se diria que a
experiência é “o que nos acontece”; em francês a experiência
seria “ce que nous arrive”; em italiano,
“quello che nos succede” ou “quello che nos accade”;
em inglês, “that what is happening to us”; em alemão,
“was mir passiert”.
A experiência é o que nos passa, o que nos acontece,
o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas
coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.
Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado
para que nada nos aconteça.1 Walter Benjamin, em um
texto célebre, já observava a pobreza de experiências
que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram
tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.
Em primeiro lugar pelo excesso de informação.
A informação não é experiência. E mais, a informação
não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário
da experiência, quase uma antiexperiência. Por
isso a ênfase contemporânea na informação, em estar
informados, e toda a retórica destinada a constituirnos
como sujeitos informantes e informados; a informação
não faz outra coisa que cancelar nossas possi-
1 Em espanhol, o autor faz um jogo de palavras impossível
no português: “Se diria que todo lo que pasa está organizado para
que nada nos pase”, exceto se optássemos por uma tradução como
“Dir-se-ia que tudo que se passa está organizado para que nada se
nos passe” (Nota do tradutor)bilidade de experiência. O sujeito da informação sabe
muitas coisas, passa seu tempo buscando informação,
o que mais o preocupa é não ter bastante informação;
cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado,
porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber
(mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no
sentido de “estar informado”), o que consegue é que
nada lhe aconteça. A primeira coisa que gostaria de
dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la
da informação. E o que gostaria de dizer sobre o saber
de experiência é que é necessário separá-lo de saber
coisas, tal como se sabe quando se tem informação
sobre as coisas, quando se está informado. É a língua
mesma que nos dá essa possibilidade. Depois de assistir
a uma aula ou a uma conferência, depois de ter lido
um livro ou uma informação, depois de ter feito uma
viagem ou de ter visitado uma escola, podemos dizer
que sabemos coisas que antes não sabíamos, que temos
mais informação sobre alguma coisa; mas, ao
mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos
aconteceu, que nada nos tocou, que com tudo o que
aprendemos nada nos sucedeu ou nos aconteceu.
Além disso, seguramente todos já ouvimos que
vivemos numa “sociedade de informação”. E já nos
demos conta de que esta estranha expressão funciona
às vezes como sinônima de “sociedade do conhecimento”
ou até mesmo de “sociedade de aprendizagem”.
Não deixa de ser curiosa a troca, a intercambialidade
entre os termos “informação”, “conhecimento” e
“aprendizagem”. Como se o conhecimento se desse sob
a forma de informação, e como se aprender não fosse
outra coisa que não adquirir e processar informação.
E não deixa de ser interessante também que as velhas
metáforas organicistas do social, que tantos jogos permitiram
aos totalitarismos do século passado, estejam
sendo substituídas por metáforas cognitivistas, seguramente
também totalitárias, ainda que revestidas agora
de um look liberal democrático. Independentemente de
que seja urgente problematizar esse discurso que se
está instalando sem crítica, a cada dia mais profundamente,
e que pensa a sociedade como um mecanismo
de processamento de informação, o que eu quero apontar
aqui é que uma sociedade constituída sob o signo
da informação é uma sociedade na qual a experiência
é impossível.
Em segundo lugar, a experiência é cada vez mais
rara por excesso de opinião. O sujeito moderno é um
sujeito informado que, além disso, opina. É alguém
que tem uma opinião supostamente pessoal e supostamente
própria e, às vezes, supostamente crítica sobre
tudo o que se passa, sobre tudo aquilo de que tem
informação. Para nós, a opinião, como a informação,
converteu-se em um imperativo. Em nossa arrogância,
passamos a vida opinando sobre qualquer coisa
sobre que nos sentimos informados. E se alguém não
tem opinião, se não tem uma posição própria sobre o
que se passa, se não tem um julgamento preparado
sobre qualquer coisa que se lhe apresente, sente-se em
falso, como se lhe faltasse algo essencial. E pensa que
tem de ter uma opinião. Depois da informação, vem a
opinião. No entanto, a obsessão pela opinião também
anula nossas possibilidades de experiência, também
faz com que nada nos aconteça.
Benjamin dizia que o periodismo é o grande dispositivo
moderno para a destruição generalizada da
experiência.2 O periodismo destrói a experiência, sobre
isso não há dúvida, e o periodismo não é outra
coisa que a aliança perversa entre informação e opinião.
O periodismo é a fabricação da informação e a
fabricação da opinião. E quando a informação e a opinião
se sacralizam, quando ocupam todo o espaço do
acontecer, então o sujeito individual não é outra coisa
que o suporte informado da opinião individual, e o
sujeito coletivo, esse que teria de fazer a história segundo
os velhos marxistas, não é outra coisa que o
suporte informado da opinião pública. Quer dizer, um
sujeito fabricado e manipulado pelos aparatos da informação
e da opinião, um sujeito incapaz de experiência.
E o fato de o periodismo destruir a experiência
é algo mais profundo e mais geral do que aquilo
que derivaria do efeito dos meios de comunicação de
massas sobre a conformação de nossas consciências.
O par informação/opinião é muito geral e permeia
2 Benjamin problematiza o periodismo em várias de suas
obras; ver, por exemplo, Benjamim, 1991, p. 111 e ss.
Notas sobre a experiência e o saber de experiência
Revista Brasileira de Educação 23
também, por exemplo, nossa idéia de aprendizagem,
inclusive do que os pedagogos e psicopedagogos chamam
de “aprendizagem significativa”. Desde pequenos
até a universidade, ao largo de toda nossa travessia
pelos aparatos educacionais, estamos submetidos
a um dispositivo que funciona da seguinte maneira:
primeiro é preciso informar-se e, depois, há de opinar,
há que dar uma opinião obviamente própria, crítica
e pessoal sobre o que quer que seja. A opinião seria
como a dimensão “significativa” da assim chamada
“aprendizagem significativa”. A informação seria o
objetivo, a opinião seria o subjetivo, ela seria nossa
reação subjetiva ao objetivo. Além disso, como reação
subjetiva, é uma reação que se tornou para nós
automática, quase reflexa: informados sobre qualquer
coisa, nós opinamos. Esse “opinar” se reduz, na maioria
das ocasiões, em estar a favor ou contra. Com isso,
nos convertemos em sujeitos competentes para responder
como Deus manda as perguntas dos professores
que, cada vez mais, se assemelham a comprovações
de informações e a pesquisas de opinião. Diga-me
o que você sabe, diga-me com que informação conta
e exponha, em continuação, a sua opinião: esse o dispositivo
periodístico do saber e da aprendizagem, o
dispositivo que torna impossível a experiência.
Em terceiro lugar, a experiência é cada vez mais
rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa passa
demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E
com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente
substituído por outro estímulo ou por outra
excitação igualmente fugaz e efêmera. O acontecimento
nos é dado na forma de choque, do estímulo,
da sensação pura, na forma da vivência instantânea,
pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são
dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade,
pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impedem
a conexão significativa entre acontecimentos.
Impedem também a memória, já que cada acontecimento
é imediatamente substituído por outro que igualmente
nos excita por um momento, mas sem deixar
qualquer vestígio. O sujeito moderno não só está informado
e opina, mas também é um consumidor voraz
e insaciável de notícias, de novidades, um curioso
impenitente, eternamente insatisfeito. Quer estar permanentemente
excitado e já se tornou incapaz de silêncio.
Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual,
tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o
choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade
e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória,
são também inimigas mortais da experiência.
Nessa lógica de destruição generalizada da experiência,
estou cada vez mais convencido de que os aparatos
educacionais também funcionam cada vez mais
no sentido de tornar impossível que alguma coisa nos
aconteça. Não somente, como já disse, pelo funcionamento
perverso e generalizado do par informação/
opinão, mas também pela velocidade. Cada vez estamos
mais tempo na escola (e a universidade e os cursos
de formação do professorado são parte da escola),
mas cada vez temos menos tempo. Esse sujeito da formação
permanente e acelerada, da constante atualização,
da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o
tempo como um valor ou como uma mercadoria, um
sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre de
aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer
coisa, que tem de seguir o passo veloz do que se passa,
que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa
obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este
sujeito já não tem tempo. E na escola o currículo se
organiza em pacotes cada vez mais numerosos e cada
vez mais curtos. Com isso, também em educação estamos
sempre acelerados e nada nos acontece.
Em quarto lugar, a experiência é cada vez mais
rara por excesso de trabalho. Esse ponto me parece
importante porque às vezes se confunde experiência
com trabalho. Existe um clichê segundo o qual nos livros
e nos centros de ensino se aprende a teoria, o saber
que vem dos livros e das palavras, e no trabalho se
adquire a experiência, o saber que vem do fazer ou da
prática, como se diz atualmente. Quando se redige o
currículo, distingue-se formação acadêmica e experiência
de trabalho. Tenho ouvido falar de certa tendência
aparentemente progressista no campo educacional
que, depois de criticar o modo como nossa
sociedade privilegia as aprendizagens acadêmicas, pretende
implantar e homologar formas de contagem de
créditos para a experiência e para o saber de experiência
adquirido no trabalho. Por isso estou muito interessado
em distinguir entre experiência e trabalho e,
além disso, em criticar qualquer contagem de créditos
para a experiência, qualquer conversão da experiência
em créditos, em mercadoria, em valor de troca. Minha
tese não é somente porque a experiência não tem nada
a ver com o trabalho, mas, ainda mais fortemente, que
o trabalho, essa modalidade de relação com as pessoas,
com as palavras e com as coisas que chamamos
trabalho, é também inimiga mortal da experiência.
O sujeito moderno, além de ser um sujeito informado
que opina, além de estar permanentemente agitado
e em movimento, é um ser que trabalha, quer dizer,
que pretende conformar o mundo, tanto o mundo
“natural” quanto o mundo “social” e “humano”, tanto
a “natureza externa” quanto a “natureza interna”, segundo
seu saber, seu poder e sua vontade. O trabalho
é esta atividade que deriva desta pretensão. O sujeito
moderno é animado por portentosa mescla de otimismo,
de progressismo e de agressividade: crê que pode
fazer tudo o que se propõe (e se hoje não pode, algum
dia poderá) e para isso não duvida em destruir tudo o
que percebe como um obstáculo à sua onipotência. O
sujeito moderno se relaciona com o acontecimento do
ponto de vista da ação. Tudo é pretexto para sua atividade.
Sempre está a se perguntar sobre o que pode
fazer. Sempre está desejando fazer algo, produzir algo,
regular algo. Independentemente de este desejo estar
motivado por uma boa vontade ou uma má vontade, o
sujeito moderno está atravessado por um afã de mudar
as coisas. E nisso coincidem os engenheiros, os
políticos, os industrialistas, os médicos, os arquitetos,
os sindicalistas, os jornalistas, os cientistas, os pedagogos
e todos aqueles que põem no fazer coisas a sua
existência. Nós somos sujeitos ultra-informados, transbordantes
de opiniões e superestimulados, mas também
sujeitos cheios de vontade e hiperativos. E por
isso, porque sempre estamos querendo o que não é,
porque estamos sempre em atividade, porque estamos
sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não
podermos parar, nada nos acontece.
A experiência, a possibilidade de que algo nos
aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção,
um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar,
parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir
mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender
a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,
suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção
e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre
o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos
outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter
paciência e dar-se tempo e espaço.
2. Até aqui, a experiência e a destruição da experiência.
Vamos agora ao sujeito da experiência. Esse
sujeito que não é o sujeito da informação, da opinião,
do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do
fazer, do poder, do querer. Se escutamos em espanhol,
nessa língua em que a experiência é “o que nos passa”,
o sujeito da experiência seria algo como um território
de passagem, algo como uma superfície sensível
que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz
alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns
vestígios, alguns efeitos. Se escutamos em francês, em
que a experiência é “ce que nous arrive”, o sujeito da
experiência é um ponto de chegada, um lugar a que
chegam as coisas, como um lugar que recebe o que
chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em português,
em italiano e em inglês, em que a experiência soa como
“aquilo que nos acontece, nos sucede”, ou “happen to
us”, o sujeito da experiência é sobretudo um espaço
onde têm lugar os acontecimentos.
Em qualquer caso, seja como território de passagem,
seja como lugar de chegada ou como espaço do
acontecer, o sujeito da experiência se define não por
sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade,
por sua disponibilidade, por sua abertura.
Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição
entre ativo e passivo, de uma passividade feita de
paixão, de padecimento, de paciência, de atenção,
como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade
fundamental, como uma abertura essencial.
O sujeito da experiência é um sujeito “ex-posNotas
sobre a experiência e o saber de experiência
Revista Brasileira de Educação 25
to”. Do ponto de vista da experiência, o importante
não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem
a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “imposição”
(nossa maneira de impormos), nem a “proposição”
(nossa maneira de propormos), mas a “exposição”,
nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o
que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é
incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe,
ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É
incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa,
a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a
quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem
nada o ameaça, a quem nada ocorre.
3. Vamos agora ao que nos ensina a própria palavra
experiência. A palavra experiência vem do latim
experiri, provar (experimentar). A experiência é em
primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo
que se experimenta, que se prova. O radical é periri,
que se encontra também em periculum, perigo. A raiz
indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de
tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de
prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz
que marcam a travessia, o percorrido, a passagem:
peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar através,
perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas
línguas há uma bela palavra que tem esse per grego
de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da
experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe
atravessando um espaço indeterminado e perigoso,
pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade,
sua ocasião. A palavra experiência tem o ex
de exterior, de estrangeiro,3 de exílio, de estranho4 e
também o ex de existência. A experiência é a passagem
da existência, a passagem de um ser que não tem
essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente
“ex-iste” de uma forma sempre singular, finita,
imanente, contingente. Em alemão, experiência é
Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo
alto-alemão fara também deriva Gefahr, perigo, e
gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germânicas
como nas latinas, a palavra experiência contém
inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo.
4. Em Heidegger (1987) encontramos uma definição
de experiência em que soam muito bem essa
exposição, essa receptividade, essa abertura, assim
como essas duas dimensões de travessia e perigo que
acabamos de destacar:
[...] fazer uma experiência com algo significa que algo
nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos
tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma
experiência, isso não significa precisamente que nós a façamos
acontecer, “fazer” significa aqui: sofrer, padecer, tomar
o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida
que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer
dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo
que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Podemos
ser assim transformados por tais experiências, de um
dia para o outro ou no transcurso do tempo. (p. 143)
O sujeito da experiência, se repassarmos pelos
verbos que Heidegger usa neste parágrafo, é um sujeito
alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito
que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro
de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que
se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não
um sujeito definido por seus sucessos ou por seus poderes,
mas um sujeito que perde seus poderes precisamente
porque aquilo de que faz experiência dele se
apodera. Em contrapartida, o sujeito da experiência é
também um sujeito sofredor, padecente, receptivo,
aceitante, interpelado, submetido. Seu contrário, o sujeito
incapaz de experiência, seria um sujeito firme,
forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apático,
autodeterminado, definido por seu saber, por seu
poder e por sua vontade.
Nas duas últimas linhas do parágrafo, “Podemos
ser assim transformados por tais experiências, de um
dia para o outro ou no transcurso do tempo”, pode lerse
outro componente fundamental da experiência: sua
capacidade de formação ou de transformação. É ex-
3 Em espanhol, escreve-se extranjero. (Nota do tradutor)
4 Em espanhol, extraño. (Nota do tradutor)
periência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou
que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos
transforma. Somente o sujeito da experiência está,
portanto, aberto à sua própria transformação.
5. Se a experiência é o que nos acontece, e se o
sujeito da experiência é um território de passagem,
então a experiência é uma paixão. Não se pode captar
a experiência a partir de uma lógica da ação, a partir
de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto
sujeito agente, a partir de uma teoria das condições de
possibilidade da ação, mas a partir de uma lógica da
paixão, uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto
sujeito passional. E a palavra paixão pode referir-
se a várias coisas.
Primeiro, a um sofrimento ou um padecimento.
No padecer não se é ativo, porém, tampouco se é simplesmente
passivo. O sujeito passional não é agente,
mas paciente, mas há na paixão um assumir os padecimentos,
como um viver, ou experimentar, ou suportar,
ou aceitar, ou assumir o padecer que não tem nada
que ver com a mera passividade, como se o sujeito
passional fizesse algo ao assumir sua paixão. Às vezes,
inclusive, algo público, ou político, ou social,
como um testemunho público de algo, ou uma prova
pública de algo, ou um martírio público em nome de
algo, ainda que esse “público” se dê na mais estrita
solidão, no mais completo anonimato.
“Paixão” pode referir-se também a certa heteronomia,
ou a certa responsabilidade em relação com o
outro que, no entanto, não é incompatível com a liberdade
ou a autonomia. Ainda que se trate, naturalmente,
de outra liberdade e de outra autonomia diferente
daquela do sujeito que se determina por si mesmo. A
paixão funda sobretudo uma liberdade dependente,
determinada, vinculada, obrigada, inclusa, fundada não
nela mesma mas numa aceitação primeira de algo que
está fora de mim, de algo que não sou eu e que por
isso, justamente, é capaz de me apaixonar.
E “paixão” pode referir-se, por fim, a uma experiência
do amor, o amor-paixão ocidental, cortesão,
cavalheiresco, cristão, pensado como posse e feito de
um desejo que permanece desejo e que quer permanecer
desejo, pura tensão insatisfeita, pura orientação
para um objeto sempre inatingível. Na paixão, o sujeito
apaixonado não possui o objeto amado, mas é
possuído por ele. Por isso, o sujeito apaixonado não
está em si próprio, na posse de si mesmo, no autodomínio,
mas está fora de si, dominado pelo outro, cativado
pelo alheio, alienado, alucinado.
Na paixão se dá uma tensão entre liberdade e escravidão,
no sentido de que o que quer o sujeito é,
precisamente, permanecer cativo, viver seu cativeiro,
sua dependência daquele por quem está apaixonado.
Ocorre também uma tensão entre prazer e dor, entre
felicidade e sofrimento, no sentido de que o sujeito apaixonado
encontra sua felicidade ou ao menos o
cumprimento de seu destino no padecimento que sua
paixão lhe proporciona. O que o sujeito ama é precisamente
sua própria paixão. Mas ainda: o sujeito
apaixonado não é outra coisa e não quer ser outra coisa
que não a paixão. Daí, talvez, a tensão que a paixão
extrema suporta entre vida e morte. A paixão tem uma
relação intrínseca com a morte, ela se desenvolve no
horizonte da morte, mas de uma morte que é querida e
desejada como verdadeira vida, como a única coisa
que vale a pena viver, e às vezes como condição de
possibilidade de todo renascimento.
6. Até aqui vimos algumas explorações sobre o
que poderia ser a experiência e o sujeito da experiência.
Algo que vimos sob o ponto de vista da travessia
e do perigo, da abertura e da exposição, da receptividade
e da transformação, e da paixão. Vamos agora ao
saber da experiência. Definir o sujeito da experiência
como sujeito passional não significa pensá-lo como
incapaz de conhecimento, de compromisso ou ação.
A experiência funda também uma ordem epistemológica
e uma ordem ética. O sujeito passional tem também
sua própria força, e essa força se expressa produtivamente
em forma de saber e em forma de práxis. O
que ocorre é que se trata de um saber distinto do saber
científico e do saber da informação, e de uma práxis
distinta daquela da técnica e do trabalho.
O saber de experiência se dá na relação entre o
conhecimento e a vida humana. De fato, a experiênNotas
sobre a experiência e o saber de experiência
Revista Brasileira de Educação 27
cia é uma espécie de mediação entre ambos. É importante,
porém, ter presente que, do ponto de vista da
experiência, nem “conhecimento” nem “vida” significam
o que significam habitualmente.
Atualmente, o conhecimento é essencialmente a
ciência e a tecnologia, algo essencialmente infinito,
que somente pode crescer; algo universal e objetivo,
de alguma forma impessoal; algo que está aí, fora de
nós, como algo de que podemos nos apropriar e que
podemos utilizar; e algo que tem que ver fundamentalmente
com o útil no seu sentido mais estreitamente
pragmático, num sentido estritamente instrumental. O
conhecimento é basicamente mercadoria e, estritamente,
dinheiro; tão neutro e intercambiável, tão sujeito à
rentabilidade e à circulação acelerada como o dinheiro.
Recordem-se as teorias do capital humano ou essas
retóricas contemporâneas sobre a sociedade do
conhecimento, a sociedade da aprendizagem, ou a sociedade
da informação.
Em contrapartida, a “vida” se reduz à sua dimensão
biológica, à satisfação das necessidades (geralmente
induzidas, sempre incrementadas pela lógica
do consumo), à sobrevivência dos indivíduos e da sociedade.
Pense-se no que significa para nós “qualidade
de vida” ou “nível de vida”: nada mais que a posse
de uma série de cacarecos para uso e desfrute.
Nestas condições, é claro que a mediação entre o
conhecimento e a vida não é outra coisa que a apropriação
utilitária, a utilidade que se nos apresenta como
“conhecimento” para as necessidades que se nos dão
como “vida” e que são completamente indistintas das
necessidades do Capital e do Estado.
Para entender o que seja a experiência, é necessário
remontar aos tempos anteriores à ciência moderna
(com sua específica definição do conhecimento objetivo)
e à sociedade capitalista (na qual se constituiu a
definição moderna de vida como vida burguesa). Durante
séculos, o saber humano havia sido entendido
como um páthei máthos, como uma aprendizagem no
e pelo padecer, no e por aquilo que nos acontece. Este
é o saber da experiência: o que se adquire no modo
como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo
ao longo da vida e no modo como vamos dando
sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da
experiência não se trata da verdade do que são as coisas,
mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece.
E esse saber da experiência tem algumas
características essenciais que o opõem, ponto por ponto,
ao que entendemos como conhecimento.
Se a experiência é o que nos acontece e se o saber
da experiência tem a ver com a elaboração do sentido
ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um
saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de
uma comunidade humana particular; ou, de um modo
ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela
ao homem concreto e singular, entendido individual
ou coletivamente, o sentido ou o sem-sentido de sua
própria existência, de sua própria finitude. Por isso, o
saber da experiência é um saber particular, subjetivo,
relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o
que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas,
ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem
a mesma experiência. O acontecimento é comum,
mas a experiência é para cada qual sua, singular e de
alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da
experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo
concreto em quem encarna. Não está, como o
conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem
sentido no modo como configura uma personalidade,
um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma
forma humana singular de estar no mundo, que é por
sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma
estética (um estilo). Por isso, também o saber da experiência
não pode beneficiar-se de qualquer alforria,
quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de
outro, a menos que essa experiência seja de algum
modo revivida e tornada própria.
A primeira nota sobre o saber da experiência sublinha,
então, sua qualidade existencial, isto é, sua
relação com a existência, com a vida singular e concreta
de um existente singular e concreto. A experiência
e o saber que dela deriva são o que nos permite
apropriar-nos de nossa própria vida. Ter uma vida própria,
pessoal, como dizia Rainer Maria Rilke, em Los
Cuadernos de Malthe, é algo cada vez mais raro, quase
tão raro quanto uma morte própria. Se chamamos existência a esta vida própria, contingente e finita, a essa vida que não está determinada por nenhuma essência
nem por nenhum destino, a essa vida que não
tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora
dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construindo
e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que
tudo o que faz impossível a experiência faz também
impossível a existência.
7. A ciência moderna, a que se inicia em Bacon e
alcança sua formulação mais elaborada em Descartes,
desconfia da experiência. E trata de convertê-la em
um elemento do método, isto é, do caminho seguro da
ciência. A experiência já não é o meio desse saber que
forma e transforma a vida dos homens em sua singularidade,
mas o método da ciência objetiva, da ciência
que se dá como tarefa a apropriação e o domínio do
mundo. Aparece assim a idéia de uma ciência experimental.
Mas aí a experiência converteu-se em experimento,
isto é, em uma etapa no caminho seguro e previsível
da ciência. A experiência já não é o que nos
acontece e o modo como lhe atribuímos ou não um
sentido, mas o modo como o mundo nos mostra sua
cara legível, a série de regularidades a partir das quais
podemos conhecer a verdade do que são as coisas e
dominá-las. A partir daí o conhecimento já não é um
páthei máthos, uma aprendizagem na prova e pela
prova, com toda a incerteza que isso implica, mas um
mathema, uma acumulação progressiva de verdades
objetivas que, no entanto, permanecerão externas ao
homem. Uma vez vencido e abandonado o saber da
experiência e uma vez separado o conhecimento da
existência humana, temos uma situação paradoxal.
Uma enorme inflação de conhecimentos objetivos,
uma enorme abundância de artefatos técnicos e uma
enorme pobreza dessas formas de conhecimento que
atuavam na vida humana, nela inserindo-se e transformando-
a. A vida humana se fez pobre e necessitada,
e o conhecimento moderno já não é o saber ativo
que alimentava, iluminava e guiava a existência dos
homens, mas algo que flutua no ar, estéril e desligado
dessa vida em que já não pode encarnar-se.
A segunda nota sobre o saber da experiência pretende
evitar a confusão de experiência com experimento
ou, se se quiser, limpar a palavra experiência
de suas contaminações empíricas e experimentais, de
suas conotações metodológicas e metodologizantes.
Se o experimento é genérico, a experiência é singular.
Se a lógica do experimento produz acordo, consenso
ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência
produz diferença, heterogeneidade e pluralidade.
Por isso, no compartir a experiência, trata-se
mais de uma heterologia do que de uma homologia,
ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que funciona
heterologicamente do que uma dialogia que funciona
homologicamente. Se o experimento é repetível,
a experiência é irrepetível, sempre há algo como a
primeira vez. Se o experimento é preditível e previsível,
a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza
que não pode ser reduzida. Além disso, posto
que não se pode antecipar o resultado, a experiência
não é o caminho até um objetivo previsto, até uma
meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura
para o desconhecido, para o que não se pode antecipar
nem “pré-ver” nem “pré-dizer”.
JORGE LARROSA BONDÍA é doutor em pedagogia pela
Universidade de Barcelona, Espanha, onde atualmente é professor
titular de filosofia da educação. Publicou diversos artigos em
periódicos brasileiros e tem dois livros traduzidos para o português:
Imagens do outro (Vozes, 1998) e Pedagogia profana (Autêntica,
1999).
Referências Bibliográficas
HEIDEGGER, Martin, (1987). La esencia del habla. In: .
De camino al habla. Barcelona: Edicionaes del Serbal.
BENJAMIN, Walter, (1991). El narrador. In: . Para uma critica
de la violencia y otros ensaios. Madrid: Taurus, p. 111 e ss.
(Ou, na edição brasileira: , (1994). Magia e técnica, arte e
política; ensaios sobre literatura e história da cultura. In: .
Obras escolhidas. 7ª ed., São Paulo: Brasiliense, vol. I).
Recebido em novembro de 2001
Aprovado em janeiro de 2002
O OLHO DO ATOR
Roberto Mallet
Este texto corresponde à palestra que proferi no Festival Universitário de Teatro de Blumenau no dia 7 de julho de 2000. A sua transcrição foi feita por Fernando Weffort.
O que é preciso ver para ser ator, para ser um artista? Essa é uma discussão que está ligada à arte contemporânea de um modo geral e não só ao trabalho do ator especificamente. Então, gostaria de começar lembrando a origem da palavra Teatro, que muitos de vocês aqui devem conhecer. Teatro quer dizer lugar onde se vai para ver - Theátron. Esse ver do teatro, pelo menos da palavra grega theaomai, provém da raiz thea, um verbo que se traduziria mais corretamente para o português por contemplação. A contemplação é uma visão intuitiva das coisas, uma visão intelectual, da inteligência. O teatro não seria, portanto, um lugar onde eu vou para encher os olhos - como muitas vezes acaba acontecendo no teatro e na arte contemporânea, uma arte que se dirige mais ao olhar sensível. A arte, pelo menos se a gente for pegar a história da arte, sempre foi pensada, exceto em algumas correntes nos últimos dois séculos, como se dirigindo fundamentalmente à nossa inteligência através dos sentidos.
Eu venho dizendo há alguns anos que a formação do artista é também a construção de um olhar, de uma maneira de olhar, um olhar que pretenda compreender. E a nossa questão aqui é: eu como ator preciso desenvolver que tipo de olhar? Me parece que isto é algo que não fica claro para nós atores. Conta-se de um pintor que estava pintando um quadro e procurava de uma determinada cor que estava próxima do lilás, e ele não encontrava esta cor. Era um pintor que costumava ir muito aos museus, observava muito as obras de arte como inspiração e treinamento do olhar. E esse pintor, ainda atrás desse lilás, chama um coche para ir a um museu exatamente para ver se ele encontrava a porra do lilás que procurava. Quando chega o coche - era um dia iluminado, com muito sol -, era um coche todo amarelo, e quando ele viu o coche (vocês devem saber que existem cores complementares que irradiam-se em torno dos objetos - se você tem um objeto muito amarelo em torno dele você tem uma aura roxa, lilás, que é complementar do amarelo.), quando ele viu o coche ele disse: “não preciso mais ir ao museu”; voltou e preencheu a zona em torno desse ponto onde ele queria a cor com amarelo, e criou essa cor complementar. Ou seja, um pintor é alguém que tem um olhar afiado para cores, manchas, volumes, linhas... É alguém que aprende a olhar. Quem não consegue ver bem, não consegue desenhar bem, não consegue pintar bem, é óbvio. Claro que ele já tem esse talento natural, mas é algo que precisa ser desenvolvido. Um músico é alguém que ouve bem, alguém que consegue ouvir coisas que nós não ouvimos. Não é? A gente conhece músicos e fica às vezes assustado: “como é que esse cara está ouvindo tanta coisa? Eu não estou ouvindo nada disso.” Mas as coisas estão lá, ele é capaz de ouvir, ou seja, ele tem um ouvido treinado.
E nós atores temos que ter um olho treinado para o quê? Qual é a nossa matéria de trabalho? O que é que corresponde às linhas, volumes, cores no trabalho do ator? E isso liga-se com a questão do teatro grego: eu vou ao teatro para ver o quê? Para compreender o quê?
Parece-me que na formação do ator se descuida muito esse aspecto - a gente precisa ver teatro para aprender a fazer teatro. Nós estamos começando o Festival aqui, nós vamos passar ainda por vários debates. E o que eu tenho visto na maioria dos debates em outros festivais por aí, neste aqui também, em outras edições, é que o olhar das pessoas sobre o espetáculo é muito vago, é muito pouco definido. As pessoas não sabem para onde devem olhar. Isto resulta numa avaliação vaga, numa avaliação indefinida, baseada muito mais no gosto do que em dados objetivos; “gostei”, “não gostei”, “não me agrada”, “você poderia ser mais incisivo”, quer dizer, coisas que não se baseiam na obra propriamente dita mas em reações subjetivas.
Eu venho nos últimos anos discutindo muito um tema que me parece um pouco fora do nosso imaginário, do nosso campo de discussão, que é a nossa dificuldade em ser objetivos, em ver. Claro, nós estamos vivendo um período em que, há pelo menos 300 anos, a nossa civilização entrou numa relativização de todos as coisas. Começa com Descartes, na verdade começa com Guilherme de Ockam em 1350, passa por Descartes e chega em seu ápice com Kant, que chega à conclusão de que eu só posso saber o que eu percebo do mundo, mas não posso saber nada sobre o mundo propriamente dito; que eu não posso afirmar nada sobre a realidade externa, sempre ela é subjetiva. Nós vivemos ainda sobre a égide desse pensamento. A Academia, a Universidade inteira - não esta ou aquela, mas toda Universidade - vive sob a égide desse pensamento. Uma relativização de todas as coisas. A filosofia contemporânea inteira, a sociologia, a lingüística, etc., etc. De maneira que muitas vezes a gente não consegue ter um olhar objetivo sobre as coisas, e vivemos em nossa imaginação. O nosso imaginário se torna o filtro através do qual a gente vê as coisas.
Eu dizia que nos debates, muitas vezes (quando a gente está de fora é mais fácil ver do que quando a gente está de dentro), os diretores e atores quando falam sobre o seu espetáculo, eles falam sobre um espetáculo que eles imaginaram e não sobre o espetáculo que está lá. Não sei se vocês já perceberam isso, é muito comum. Eu imaginei determinadas coisas, eu tenho determinadas idéias sobre o espetáculo e eu não consigo confrontar essas idéias, essas imagens, com o objeto que é o próprio espetáculo. Aí vem todo aquele discurso: “tudo é relativo”; “isso é subjetivo”... Então eu gostaria que vocês refletissem - a nossa oficina busca um pouco isto - sobre a distância que há muitas vezes entre o que eu penso sobre as coisas ou o que eu imagino sobre as coisas e a maneira como elas de fato se apresentam a mim.
Mas voltando ao trabalho do ator, que matéria é essa que meu olho deve ser treinado para ver? Obviamente são as ações. A matéria do teatro, a matéria do ator são as ações. Fundamentalmente o ator é aquele que age - por definição. A melhor maneira que eu tenho encontrado nos últimos anos de explicar o que é uma ação, é baseada na teoria das quatro causas do Aristóteles.
Para Aristóteles, todo objeto, todo ente, tudo aquilo que existe no universo tem quatro causas. A causa eficiente, a causa formal, a causa material e a causa
final. Se a gente pensar isso num objeto qualquer, um objeto artificial - uma cadeira por exemplo - fica bastante claro para nós. Para que uma cadeira exista o que é preciso? Bom, primeiro precisa alguém que a faça; uma cadeira não aparece do nada. É o que Aristóteles chamava de causa eficiente. Segundo, ela precisa ter uma forma. O que é forma? É a estrutura interna dela, é a idéia dela (idéia no sentido Aristotélico - eidos). Terceiro, ela precisa de uma matéria da qual ela seja feita; eu não posso fazer uma cadeira de nada. Então eu vou ter sempre uma matéria, que é a causa material. E quarto, ela tem uma finalidade; aquilo é construído por alguma razão.
Aristóteles aplica isso ao universo inteiro, tanto ao universo artificial, quanto ao universo natural. Nós não vamos entrar aqui na questão do universo natural porque tem muita discussão nisso e nós vamos perder o rumo da nossa conversa. Então nós vamos nos limitar aos objetos artificiais. Nos objetos artificiais isso aí é de uma obviedade indiscutível. Numa obra de arte, por exemplo (numa cadeira), você sempre vai ter esses quatro elementos. No nosso comportamento isso aí é indiscutível também; a gente não faz nada, absolutamente nada, sem razão alguma. A gente pode até pensar que está fazendo sem razão, aí entra toda a teoria freudiana, da psicanálise e de todas psicologias que buscam encontrar as motivações ocultas em atos aparentemente sem sentido... e isso está por trás dessa teoria, ela parte desse princípio: não existe nada que aconteça por acaso. Então se você sonhou com alguma coisa deve ter alguma razão para isso, e ela vai atrás dessas razões.
Agora, se a gente se voltar para o ator - Stanislavski falava disso exaustivamente, não tenho nada de novo para dizer para vocês, talvez eu só esteja tentando pegar isso numa linguagem, a partir de alguns elementos mais acessíveis a nós - toda ação tem o que ele chamava de objetivo, e que o Aristóteles chamava de causa final, e é ela que move a ação. Dizia o Aristóteles que a causa final é que move, mas ela não move da mesma maneira que a causa eficiente - que é aquele que vai lá e faz, se movimenta e age para fazer a cadeira - ela move, de uma certa forma, como atração. Eu quero chegar naquele objetivo e portanto eu faço alguma coisa. É esse o sentido de movimento para a causa final, o objetivo.
Agora, no trabalho do ator a gente percebe que existe duas ações pelo menos, talvez três. Vamos pegar um espetáculo realista em que é mais fácil da gente pensar isso, mas isso se aplica, guardadas as transposições necessárias, para o teatro não-realista, para a dança, enfim, para qualquer uma das artes que chamamos hoje de performáticas. No teatro realista, você tem a ação da personagem - quando Stanislavski falava em objetivo ele estava se referindo a essa ação, ao objetivo da personagem. Digamos, quando Hamlet convence os atores a fazer aquele espetáculo com o texto que ele escreveu, qual era a finalidade dele? A finalidade dele era testar uma teoria... testar o que o fantasma falou para ele; ver se realmente o rei matou o pai dele ou não. Ele tem uma finalidade objetiva ali. Isso não pode ser esquecido pelo ator.
Bom, mas não é só essa ação que a gente tem no ator. Aliás essa ação não está no ator, está no imaginário do ator, às vezes muito mais no imaginário do público do que no imaginário do ator. Há uma confusão freqüente sobre isso entre os nossos atores: achar que há uma identificação de objetivo, ou mesmo de ser,
entre o ator e a personagem. Isso é uma grande bobagem; você não pode ser a personagem, por definição - você é você. Segundo, você não pode sentir as coisas que a personagem sente. Muitos atores se perdem nisso, tentando sentir o que a personagem sente, achando que memória afetiva em Stanislavski era isso - não era! É bem verdade que nos livros que a gente tem traduzidos do Stanislavsky, a linguagem é um pouco confusa e pode nos levar a pensar isto. Mas em outros momentos isso é objetivamente dito por ele: o ator não deve se preocupar em sentir, o ator tem que se preocupar em agir. O sentimento é decorrência da ação. E mais, o ator não sente as coisas que a personagem sente. Imagine se o ator que faz Otelo sentisse o que Otelo sente. Seria a produção mais cara do mundo; precisaria de uma atriz por dia, mais o enterro, etc., etc., ia sair muito cara essa produção. O que o ator sente é outra coisa - e não importa muito o que ele sente, importa o que ele faz.
Essa segunda ação do ator é uma ação que ele realiza sobre o seu próprio organismo psico-físico e sobre o espaço que o rodeia, sobre os outros atores, sobre o público... enfim, é a ação do criador propriamente dita. Aqui a gente colocaria que o ator é causa eficiente; a matéria é o seu próprio organismo psico-físico; a forma, a ação da personagem; e a finalidade é a própria obra.
Está dando para acompanhar? Porque aqui é que está o buraco, me parece. A finalidade é a própria obra. É o que Stanislavski chamava de superobjetivo. E é a própria obra enquanto sentido também - a obra tem um sentido - e não a própria obra em geral - “fazer teatro”. Me parece que este é um dos nossos equívocos fundamentais. Claro que na oficina a gente vai ter a oportunidade de fazer pequenos experimentos práticos que vão esclarecer isso um pouco melhor do que essa breve conversa que a gente está tendo. Mas eu vou tentar falar um pouco sobre isto, porque me parece que se a gente conseguir ver isso com mais clareza, nosso trabalho ganharia muito.
Uma vez que a ação da personagem é a causa formal do trabalho do ator, ela tem que estar muito presente nesse trabalho. O Stanislavski dizia uma coisa genial em relação a isto: o ator não pode pensar nunca em generalidades. E é a coisa que a gente mais faz.
Todos vocês devem ter tido essa experiência: você entra em cena, começa a desenvolver alguma coisa, o diretor pára e diz: mas você está fazendo isso por quê? Você está querendo o quê? “- Não, é que... é...” - a gente não sabe, é sempre muito geral. “- Não, é que... ela está querendo ser feliz.” Mas o que é isso, “querer ser feliz”? “Ela quer se vingar...” Mas o que é isso, “querer se vingar”? Isso é muito geral. É o que eu dizia antes, a gente vive num mundo muito abstrato. Porque o mundo da imaginação é um mundo abstrato, é um mundo esquemático. Quando você lembra de alguém, por exemplo - mesmo pessoas que você conhece intimamente, mesmo sua mãe - a imagem que você tem de sua mãe é um esquema, onde está faltando um monte de coisa, é abstrata. Como é que eu faço para concretizar isso, como ator? Como é que eu transformo isso em ação? Esta é a pergunta.
A imaginação do ator tem que ser uma imaginação que se encarna. Ou seja, é uma imaginação que não é puramente mental. A gente muitas vezes acha que a imaginação é uma espécie de filme que está lá na nossa cabeça. A gente reduz a imaginação à memória visual. Ok, nós temos mesmo um preponderância
do olhar na nossa percepção, mas quando eu transformo isso em ação, isso tem que se encarnar em meu corpo, ou seja, você tem que trabalhar com os seus cinco sentidos.
Jacques Copeau tem uma definição muito legal sobre o trabalho do ator, onde ele diz que o ator não mente, não é uma mentira o trabalho do ator, mas é uma espécie de ação (eu prefiro a palavra ação, ele fala em sentir o imaginário), uma ação diziam assim: não existe o teatro, existem teatros! Como se o plural resolvesse o problema. Mas quando você fala teatro você está falando do quê? E se é plural, é plural do quê? Isso é uma negação, de novo, tipicamente do mundo contemporâneo, uma negação das essências. Uma idéia de que as essências não existem. De uma certa forma, de fato elas não existem, porque elas só existem na coisa, não existe uma essência separada, uma essência pura, isso não existe mesmo. Mas a definição de teatro (talvez a mais apropriada, ou a que eu mais uso) é: alguém que age num plano ficcional diante de alguém que vê. Se você tiver isso você já tem teatro.
Nesse caso, por exemplo, que eu citava, um exercício onde a pessoa não sabe exatamente o que ela está fazendo, ela não tem claro um objetivo interno à cena. O que é que está acontecendo de fato? Eu concluí ao longo desses meus anos de trabalho que é a causa final que está errada. Não é que ela não tenha um objetivo, é que ela está com um objetivo equivocado. O objetivo dela é, por exemplo, resolver a cena. Ela entra para isso. Dá para entender onde é que está esse buraco?! Isso é fundamental! Digamos que você tem essa cena de que a gente falava, do Hamlet. Ele quer convencer os atores a fazerem um determinado espetáculo porque ele está interessado em revelar ou, pelo menos, em testar o rei. Esse objetivo é muitas vezes esquecido pelo ator e ele entra na cena para fazer teatro - é isso que está na cabeça dele, a gente vê isso nos espetáculos com muita freqüência, isso aí é o ponto a partir do qual o espetáculo começa a se degradar, começa a esvaziar. As pessoas já não repetem, já não refazem os espetáculos com os objetivos reais do espetáculo, mas com o objetivo de fazer de novo, de repetir; elas mudam o objetivo insensivelmente, e não percebem que estão mudando o objetivo. Agora mesmo com o espetáculo que eu estava dirigindo lá em São Paulo aconteceu isso no meio da temporada. Eles fizeram um espetáculo péssimo. E você vai ver por que é que isso acontece - é porque não há mais o impulso inicial que movia o ator; ele esqueceu daquele impulso e começa a gerar uma outra preocupação que é repetir e fazer o espetáculo bem feito. Isso quando havia uma ação originalmente.
Muitos atores têm como objetivo fundamental ser admirados. A pessoa está em cena não é para fazer teatro, não é para te dizer alguma coisa, mas é para que você diga alguma coisa para ela. Isso é maravilhoso. Nós precisamos identificar isso, porque isso está na cena.
Notem: a causa final está na cena. É ela que move o agente. Dito de outra maneira: a causa final determina a obra. E se ela determina a obra, eu posso identificá-la na obra. Há pouco tempo eu assisti um espetáculo, em uma mostra, que era uma série de histórias... Era um espetáculo composto de narrativas... E esse espetáculo era costurado por pequenas canções. Eram dois atores, um que tocava violão e cantava e o outro que fazia mais a narrativa e que também cantava. E acontecia uma coisa muito ruim no espetáculo: a narrativa era
maravilhosa, as músicas de ligação eram muito fracas. Quando entravam essas músicas o espetáculo caia lá em baixo. Aí, quando retomava a narrativa, o espetáculo vinha subindo e voltava para o ponto. Vendo o espetáculo imediatamente compreendi: esse ator, o violonista, é o compositor das músicas. Só pode ser isso. É a única razão para que essas músicas estejam costurando o espetáculo. E tiro e queda! Ele era o compositor das músicas. Dá para perceber? Quer dizer, o cara simplesmente ficou cego, ele deixou de ver a obra que estava construindo em função do desejo pessoal de mostrar suas músicas. E ele simplesmente fica cego mesmo. Porque se ele soubesse disso, tudo bem, estão me entendendo? O que nós estamos discutindo aqui é isso: o problema é que você cega, deixa de ver. O objetivo é tão forte que cobre, te cega. Porque se o cara lá entrasse em cena sabendo que ele quer ser admirado, ok, porque ele conseguiria transpor isso e poderia até vir a conseguir o seu intento, mas o problema é que ele não sabe disso e a direção não percebe isso também. Se o objetivo dele é “fazer teatro”, é “mudar o mundo”, isso é uma coisa muito vaga, muito ampla. Os objetivos precisam ser concretos.
E o que é essa ação dramática, então? Essa é a minha discussão há anos, quem me conhece sabe que esse é o tema corrente, obsessivo da minha discussão. Porque eu acho que a maioria dos nossos atores não compreende mais o que é a ação dramática.
Por exemplo, hoje em dia temos muitos espetáculos onde o objetivo é mostrar as habilidades adquiridas pelo elenco. Algumas pessoas que vêem na linha do teatro antropológico caem nisso. Não estou nem dizendo que o teatro antropológico cai nisso. Mas o cara adquiriu uma habilidade, passou meses, anos trabalhando para adquirir a porra daquela habilidade e ele não se contenta que aquilo seja apenas um elemento estrutural no seu trabalho, ele precisa mostrar para as pessoas a habilidade que ele tem. E aí você perdeu a dimensão da ação, e portanto a dimensão do sentido, e foi para a demonstração de habilidade, que é um fato circense e não teatral. Eu vou ao circo para ver habilidades desenvolvidas. Uma vez eu vi no programa do Jô Soares um treinador de orangotangos. Depois de demonstrar várias habilidades do orangotango, havia um número em que o orangotango comia, numa mesinha. O Jô perguntou-lhe: “Quanto tempo para fazer o orangotango comer no prato?” E o treinador respondeu: “Um ano só para fazê-lo pegar na colher.” E e é isto, você vai ao circo e aplaude porque o cara perdeu um ano da vida dele para fazer um orangotango pegar numa colher. É esse o sentido do circo. O Barba tem uma definição legal sobre isso - eu tenho as minhas diferenças com o Barba (e ele tá cagando pra isso, né?), mas o trabalho teórico dele tem um valor imenso... Eu costumo dizer que o Barba faz teatro comparado e não antropologia teatral - ele comparou várias formas de teatro e tirou os princípios que subjazem a todas elas, e é um trabalho brilhante, nenhum de vocês pode desconhecer a obra desse cara, especialmente o livro A Canoa de Papel, que para mim é o livro mais generoso do Eugênio Barba, e também o de maior utilidade para os atores. Mas, voltando, ele diz uma coisa que é muito legal nesse sentido. Ele diz: eu vou ao circo para ver algo que é incrível. Minha relação com o circo é essa, eu vejo o cara fazendo e percebo que eu não conseguiria fazer aquilo. Ele está demonstrando uma habilidade que eu não tenho. E eu vou ao teatro para ver algo que é crível. É o contrário. No teatro eu acredito
(ficcionalmente, é claro) no que está acontecendo. Então, toda demonstração de habilidade no teatro me distancia, no sentido de eu observar aquilo como circo, ou seja, como algo que não tem sentido senão a demonstração da habilidade.
Portanto toda ação, se tem uma causa final, tem um sentido. Teve um tempo que eu costumava dizer que num espetáculo ou num determinado momento não tem ação. Mas é preciso ir mais a fundo nisso. Na verdade é impossível que não tenham ações lá. De acordo com Aristóteles, tudo está agindo o tempo todo. O que ocorre é que a ação não é dramática, ou seja, a ação não é teatral. O objetivo do que o cara está fazendo não corresponde, não se integra no contexto do teatro. Por exemplo, uma ação cujo objetivo seja mostrar as habilidades do sujeito saiu do âmbito teatral. O cara que está te mostrando os belos pensamentos que ele teve, as coisas muito interessantes que ele tem a dizer, saiu do âmbito teatral.
Voltando à questão do olhar do ator - do olho do ator: para onde o nosso olhar tem que se dirigir no dia a dia? O que é que nós temos que observar? As ações e, portanto, os sentidos das coisas. Não de um ponto de vista crítico - não tenho que observar os homens como se eu fosse um técnico de laboratório, um crítico... aliás, você vai se tornar um chato se você for por esse caminho, que está sempre analisando, detectando o que é as pessoas estão querendo. Mas com amor. Ou seja, eu tenho que me colocar no lugar das pessoas e tentar perceber o que elas querem, por que é isso que está determinando a ação delas. Não é isso? Eu sei quem alguém é não pelo seu caráter, mas pelas suas ações. É o que o velho Aristóteles dizia. no teatro o caráter não é o mais importante, o caráter da personagem, mas a trama dos fatos, as ações. Eu sei quem alguém é pelas coisas que ele faz. Não adianta a pessoa me dizer: olha, eu sou muito generoso... A gente não acredita. A gente espera até ver essa pessoa numa situação tal que nos revele se realmente ela é generosa ou não. O que a gente fala sobre nós mesmos (e sobre os outros) tem pouca importância se comparado ao que a gente faz.
Bom, eu queria concluir a minha fala dizendo que nos últimos anos eu comecei a colocar como critério de avalição de um espetáculo - como jurado já tive meus problemas por causa disto - se o espetáculo é generoso. Porque uma obra de arte é feita para o público e um espetáculo que é feito para ser admirado, louvado, é um espetáculo que está fechado em si mesmo. Eu gosto de dizer que o ator é um presente que se dá. Então esse ato de generosidade, de doação, ele está por trás dessa ação do ator. Se você conseguisse ter isso mais claro você já eliminaria metade das ações equivocadas que você pode realizar em cena. Metade. A outra metade você tem que alcançar por outro caminho.
O Jacques Copeau tem uma frase definitiva sobre essa questão: “para o ator doar-se é tudo; mas para doar-se é preciso antes possuir-se”. Então esse olhar que pretende conhecer o outro, deve também ser um olhar objetivo e - aí sim muito cruel - em relação a nós mesmos. A gente também tem que observar nas nossas ações - o que de fato nos move. Porque nós somos muitas vezes grandes mentirosos em relação a nós mesmos. A gente doura a pílula. A gente está querendo uma coisa, mas pra não confessá-lo dizemos que estamos querendo outra. E isto para nós mesmos! Nós conseguimos enganar a nós mesmos, e isso é um verdadeiro prodígio.
Esse questionamento das ações no mundo, inclusive das minhas, ou talvez principalmente das minhas, é que pode me dar um conhecimento mais profundo da matéria (ou da forma, depende do ponto de vista) do ator, que é a ação.
Roberto Mallet é diretor, ator e professor. Em 1992 fundou o Grupo Tempo onde dirigiu os espetáculos Judite (1993), Abismo de Rosas (1994), Teresinha (1998), Canto de Outono (1999) e Drakul - paixão e morte (2002). Em 2001 voltou a trabalhar como ator, no monólogo Lições de Abismo, direção de Mario Santana. Cursou Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde conheceu Maria Helena Lopes (Grupo Tear), com quem estudou de 1980 a 1986, tendo trabalhado como escriba no espetáculo Os Reis Vagabundos (1982) e como ator em Crônica da Cidade Pequena (1984). Desde 1987 vem se dedicando também ao ensino, particularmente nas áreas de interpretação e teoria teatral. Foi professor na Universidade Regional de Blumenau (SC), de 1989 a 1992, e no Curso Livre de Formação de Atores do TUCA, de 1992 a 1994. Ministra freqüentemente workshops e oficinas. Atualmente é professor de interpretação no Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Campinas – UNICAMP.
A ESCRITA NA CENA
anatomia de uma dramaturgia do coração
por Isabel Teixeira
Não somos autoras de peças de teatro, não somos dramaturgas.
Escrevemos no ar da sala de ensaio. Nossa próxima linha é o
próximo instante. Vírgula é, literalmente, respiração.
***
A dramaturgia do espetáculo Rainha[(s)], duas atrizes em busca de
um coração, foi, antes de tudo, um ato de ousadia. Mais do que
isso, foi um tiro de canhão no meio da escuridão que se instalou
logo depois que soubemos da impossibilidade do nosso dramaturgo
nos acompanhar no dia a dia da sala de ensaio. Num rompante de
coragem (durante todo o processo e temporada do espetáculo,
muitas vezes tivemos que nos munir dessa coragem de guerreiras)
eu e Georgette, numa cumplicidade silenciosa, confiando mais uma
na outra do que em nós mesmas, afirmamos com veemência para
Cibele Forjaz, nossa diretora, que assumiríamos o risco de escrever
essa peça. Não somos dramaturgas. Somos atrizes. Metidas. Cibele,
desconfiada, acabou nos dando um voto de confiança - o primeiro
entre muitos. Na verdade tanto a sugestão quanto a aceitação da
proposta eram uma mescla de desejo (o que, segundo Cibele, move
tanto o ator quanto o mundo) e atração pelo risco de passearmos
pela beira de um abismo. O risco sempre iminente da queda. Esse é
o tipo de passeio que gostamos de fazer nas nossas tardes de
trabalho e prazer em salas de ensaio. Tempos depois nós três
diríamos em uníssono, todas as noites, que essa peça foi escrita
com o sangue do nosso coração ralado.
METODOLOGIA: INTUIÇÃO E DISCIPLINA
Não houve uma metodologia de trabalho previamente planejada.
Também não inventamos nada de novo. Entramos em sala de
ensaio tendo em mãos, como instrumentos, nossas trajetórias
individuais tanto no teatro quanto na vida. Acredito que de alguma
forma todos os nossos parceiros e parceiras de trabalhos anteriores
tiveram, através de cada uma de nós, sua porção de colaboração na
criação do espetáculo. Juntas, criamos intuitivamente uma disciplina
de trabalho que seguimos à risca durante todo o período de ensaio.
Trabalhávamos de segunda a quinta e toda sexta feira
apresentávamos o que Cibele chama de um corrido "por exemplo".
Funciona da seguinte maneira: se a estréia da peça fosse hoje, ela
seria, "por exemplo", assim... Invenção sábia da direção. O corrido
era apresentado a toda a equipe da peça. Esse método de trabalho
fez com que a criação de luz, figurino, cenário, música e produção
estivesse sempre intimamente ligada ao trabalho que estava sendo
realizado em sala de ensaio. Nas discussões que se seguiam aos
corridos "por exemplo", além de pensarmos juntos o todo da peça,
conseguíamos sentir e perceber a trajetória que tínhamos
percorrido nos dias anteriores. Nossa equipe era também nosso
público-cobaia: ouvidos pacientes para uma dramaturgia que
começava a ser esboçada.
De segunda a quinta, nos dois primeiros meses, nos concentramos
no desenvolvimento de um cotidiano de trabalho voltado para a
tentativa de tatear um caminho para a escrita da nossa
dramaturgia. Em pouco tempo, conseguimos estabalecer uma rotina
produtiva. Descrevo a seguir o passo a passo desse primeiro round
da escrita na cena. O trabalho foi desenvolvido repetidamente
desde a primeira cena do primeiro ato do texto de Schiller até a
cena quatro do terceiro ato (a famosa cena do encontro entre
Elizabeth e Maria Stuart, que em nosso espetáculo aparece
adaptada, porém seguindo o mesmo percurso da cena original). A
cada cena, iniciávamos novamente a trajetória. Vale ressaltar que
nosso norte sempre foi a peça Mary Stuart de Friedrich Schiller, na
belíssima tradução de Manuel Bandeira. Nossos textos eram um
xerox da publicação da peça pela Editora Aguilar na década de
1950, em dois volumes. Uma edição de luxo da obra completa de
Bandeira que eu havia encontrado num sebo no final da década de
1990, época que me apaixonei pela poesia de Bandeira e,
consequentemente, pela peça de Schiller. Século passado.
A escrita na cena, primeiro round:
A BUSCA DE UM CAMINHO PARA O CORAÇÃO
Instrumentalização (nos apropriando dos antecedentes da ação):
aulas de história com o Prof. Rodrigo Bonciani. Dois tópicos
principais: o século XVI (período Elizabetano) e os séculos XVIII e
início do XIX (Schiller). Estudo sobre a vida de Mary Stuart e
Elizabeth I.
Trajetória:
1. Estudo do texto (Decupagem cena a cena. Análise.)
Eu e Cibele havíamos trabalhado juntas durante quase oito anos na
Cia. Livre de Teatro. Em peças como Toda Nudez Será Castigada,
de Nelson Rodrigues e, principalmente, Um Bonde Chamado Desejo,
de Tenneessee Williams, Cibele (diretora de ambas) conduzia, nos
primeiros meses de ensaio, uma minuciosa e deliciosa análise e
decupagem do texto. Nos debruçávamos com prazer no tradicional
trabalho de mesa. Cibele para mim é a "Rainha do Subtexto". Toda
sua condução do trabalho de dissecação do texto tem como
principal objetivo revelar, com a ajuda das canetinhas coloridas que
começamos a cultuar, o mundo latente que cada frase traz nos
espaços entre as palavras. A miopía crônica de Cibele deve ser um
instrumento precioso para sua a percepção dessas veias ocultas do
texto. Esse trabalho minucioso e inspirador cria aos poucos um rico
arsenal a ser aproveitado desde a batalha dos ensaios até as
temporadas das peças. Quando começamos o trabalho com Mary
Stuart, já sabíamos que esse seria o nosso ponto de partida:
munidas de várias canetinhas e lápis de cor, nos debruçamos sobre
o texto de Schiller em xerox perfumado e começamos a trabalhar a
primeira cena do primeiro ato.
2. Improviso livre sobre a cena estudada.
Estipulou-se uma regra-base: toda vez que analisássemos uma
cena, logo em seguida iríamos improvisar livremente sobre ela. Não
havia um direcionamento específico em relação a uma determinada
técnica de improvisação. Éramos livres para abrir mão de todo o
arsenal de técnicas com as quais tivemos contato ao longo dos
anos. Georgette e eu tínhamos a nosso favor uma vivência em
comum: havíamos trabalhado, em momentos distintos, com Tica
Lemos (que, por um golpe de sorte, se juntou a nós em Rainha[(s)]
como diretora corporal) e Cristiane Paoli-Quito. Em algum lugar do
corpo falávamos a mesma língua.
A peça original de Schiller tem, no mínimo, dezoito personagens. Na
montagem de Ziembinski em 1955 pelo TBC, Teatro Brasileiro de
Comédia, tendo Cacilda Becker e Cleyde Yáconis como Maria Stuart
e Rainha Elizabeth, respectivamente, estavam em cena vinte e três
atores. Na arena de ensaio da nossa montagem, só eu, Georgette e
Elisete Jeremias, diretora de cena, mais tarde nomeada nossa única
súdita assistente. Portanto, a improvisação seguindo um caminho
literal em relação à cena, já estava descartada de antemão. Nós
bem que tentávamos, mas era impossível. Nossa peça seria
centrada nas duas rainhas e teríamos que acolher os demais
personagens, assim como suas funções dramáticas, em duas únicas
figuras. Roubar a curva e a função dramática de personagens que
não eram os meus se tornou de repente um jogo divertido durante
todo o trabalho.
Nas improvisações desse primeiro round ainda não sabíamos quem
iria interpretar Elizabeth e quem iria interpretar Maria Stuart. Na
realidade, vislumbrávamos uma possibilidade de trocar de
personagens durante a peça. A experiência do jogo teatral que
Cibele havia estabelecido em Arena Conta Danton (onde a cada ato
uma rodada de roleta conferia ao acaso a divisão de personagens),
parecia-nos um recurso pertinente à nossa montagem.
Havíamos percebido que, de modo geral, o primeiro ato tem a
função de apresentar Maria Stuart. O segundo ato desenha com
mais nitidez a Rainha Elizabeth I. O terceiro ato é o encontro das
duas. Por conta disso, as improvisações começaram centradas em
Maria Stuart. Quando avançamos na análise, passamos a improvisar
as cenas do segundo ato, onde o foco do trabalho era Elizabeth.
Desse modo, as duas atrizes vivenciaram as duas personagens no
período de criação da dramaturgia. Muitas vezes as falas de
Elizabeth no espetáculo provém de improvisos meus (que na peça
represento Maria Stuart) e muitas falas de Maria Stuart são
resultado de improvisos de Georgette. Essa inversão da autoria do
texto pontua uma característica vital da poética do espetáculo,
baseada em inversões e espelhamentos: a competitividade entre as
duas rainhas, a luta pelo poder e toda a temática da história de
Elizabeth e Maria, são representadas por duas atrizes que criaram
em sala de ensaio uma dramaturgia calcada na despersonalização,
na doação, no desapego. Quem escreve é um conjunto. Não há
mais texto seu e texto meu. O que existe é o texto. E duas atrizes.
Aprendemos a derramar na boca da outra as falas mais lindas dos
nossos improvisos.
3. Registro em vídeo. Transcrição.
Desde o primeiro dia de ensaio, registramos todo o trabalho sobre
as cenas em vídeo. Tínhamos o privilégio de ter ao nosso lado,
como assistente de direção, a atriz, videomaker e diretora Luaa
Gabanini, integrante e militante do Núcleo Bartolomeu de
Depoimentos. Era ela quem operava com maestria a nossa câmera
caseira. Eu havia decidido transcrever todos os nossos improvisos.
Não sei ao certo por que insisti nesse trabalho quase insano. Hoje
percebo que talvez tenha sido para suprir a ausência de um texto
nosso. Pelo menos assim teríamos alguma coisa impressa num
papel. Como transcrevia assistindo aos vídeos feitos por Luaa, além
de começar a me acostumar com nossas imagens, percebia nuances
das improvisações e dos workshops e usava o tempo passado na
fente do computador como um momento de reflexão sobre as cenas
que iam surgindo e o percurso que estávamos traçando. O trabalho
de transcrição foi se tornando cada vez mais prazeiroso. Na verdade
foi se tornando um vício.
4. Comentário da direção sobre o improviso. Elaboração de
workshop.
Depois de cada improviso, Cibele abria espaço para uma discussão
sobre o que havia sido realizado. Muitas vezes ela nos inspirava
para a elaboração do workshop. Normalmente tínhamos um ou dois
dias para criá-lo. Nesta etapa do trabalho o improviso livre era o
ponto de partida para a criação de uma cena mais elaborada.
Poderíamos usar tanto o texto original de Schiller quanto o que
havia surgido na improvisação. O workshop também era
devidamente transcrito. Surgia assim, um segundo texto bruto que
posteriormente seria mais uma fonte para a dramaturgia da peça.
A importância dessas duas etapas de trabalho em sala de ensaio
(improviso seguido de workshop) é, na minha opinião, indiscutível.
Vale citar como exemplo uma improvisação sobre a cena onde, no
texto original de Schiller, Mortimer se apresenta como salvador de
Maria. Inglês protestante convertido ao catolicismo, ele aparece na
côrte de Elizabeth como o novo carceireiro de Maria. Logo ele se
revela como peça chave de uma conspiração para libertar Maria e
torná-la rainha da Inglaterra. Mortimer é um apaixonado. E é a
paixão desmedida que irá trair suas primeiras intenções. Na loucura
cega de seu amor por Maria, inflamado por uma certa juventude
inconsequente, ele põe tudo a perder. Ao ver sua conspiração dar
em nada e ao se deparar com o fato de que ele havia sido uma
alavanca propulsora para a condenação final de Maria, Mortimer
acaba com a própria vida. Na tentativa de salvar Maria, ele
praticamente acaba por condená-la, como sugere uma de suas
falas: "O teu próprio anjo preparou tua queda." Durante toda a
improvisação livre, que durou pouco mais de três horas, nós
fracassamos diversas vezes. Não chegávamos a lugar nenhum. Não
sabíamos como lidar com o texto e com a situação. Como trazer o
personagem de Mortimer para a cena sem, no entanto, representar
Mortimer? Todas as vezes que tentávamos, acabávamos por nos
deparar com uma espécie de beco sem saída no jogo do improviso.
Mas não desistíamos. Recomeçamos o trabalho diversas vezes
naquele dia de ensaio. Cibele permaneceu calada, atenta e presente
durante todo o tempo. Não interferiu. Nós recomeçávamos por
conta própria. Terminado o ensaio, depois de horas de tentativas,
Cibele nos pediu que fôssemos para casa e no dia seguinte
trouxéssemos um outro workshop sobre a mesma cena. Me lembro
de ter saído do ensaio completamente perdida. Parecia que não
tínhamos nenhum norte, que nunca saberíamos por onde seguir. A
única certeza é que eu não estava perdida sozinha. Georgette
estava comigo. No dia seguinte, os dois workshops apresentados
nos traziam plenas na cena. Coincidentemente nós duas partimos
de um depoimento pessoal, onde o tema central era: "onde está o
coração?" Mais especificamente, nos perguntávamos: "onde está
meu coração nisso tudo? O que esta história tem a ver comigo?
Com meu tempo? Com minha vida? O que eu quero dizer com essa
peça? Como nos aproximar de duas rainhas com realidades tão
diferentes das nossas e ao mesmo tempo apaixonantes?" Os dois
workshops apresentados estão presentes na peça e foram a chave
para o primeiro vislumbre da nossa estrutura dramatúrgica.
Trouxemos à tona, cada uma a seu modo, uma personagem calcada
em nós mesmas e na nossa busca: a atriz apaixonada. No que veio
a ser o texto final de Rainha[(s)], o primeiro ato também é
construído visando a apresentação de Maria Stuart. Porém, a
agente dessa apresentação é a “atriz apaixonada”. Soando como
um harmônico de Mortimer, é essa atriz apaixonada quem se
apresenta como salvadora de Maria, trazendo-a para a cena e para
a trama:
Atriz apaixonada – Mas nada é por acaso. Porque o destino escolheu
o meu braço para te salvar. De edital em edital, eu lutei por você.
Foram horas e horas na frente do computador aprendendo a fazer
planilhas. Eu consegui! Eu cheguei até essa arena! Eu trouxe um
exército! Eu vou arrancar as últimas páginas do original e ninguém
vai poder dizer que esse original existiu, entendeu? Nós vamos,
juntas, reescrever o final dessa peça com o sangue do nosso
coração ralado. É a subversão do texto clássico! E toda noite, toda a
noite você vai ser coroada, nesse teatro, rainha da França, rainha
da Escócia, rainha da Inglaterra! É um triângulo de coroas sobre a
tua cabeça! E sabe o que vai acontecer? The Queen! The Beatles!
Maria - Eu sou a Rainha Maria. Olha a minha coroa! (Se coroa com
um cabide sobre a cabeça.)
É essa atriz apaixonada que, aos poucos, “vira” Elizabeth.
A escrita na cena, segundo round:
CIRURGIA, CORTE E COSTURA.
Nosso arsenal de textos começava a tomar forma. O original de
Schiller, as transcrições dos nossos improvisos e workshops, um
mar de páginas escritas e latentes em nossos computadores
estavam nos pedindo dutos, direcionamentos. Impulsionadas pelo
exercício semanal do corrido "por exemplo", desde a primeira
semana de ensaio começamos a esboçar roteiros capazes de
organizar as apresentações que deveríamos fazer para toda a
equipe. Esses roteiros iniciais, denominados "ralando as idéias",
passaram a ser o esqueleto que mais tarde sustentaria o corpo do
texto. Sabíamos que, como médicos experientes, teríamos que
realizar verdadeiras cirurgias nas transcrições. Inseríamos no
roteiro trechos dos improvisos e dos workshops e falas escolhidas a
dedo do texto original de Schiller.
Cortar é uma arte. Organizar e roteirizar também. A operação
parece ser facilitada pelos nossos recursos modernos de copy e
paste. Cibele é, sem dúvida, uma cirurgiã experiente. Tesoura em
riste desde seus tempos de Teatro Oficina, sempre teve o sangue
frio necessário para operações complexas sobre textos clássicos,
como, por exemplo, Hamlet ou, já como diretora da Cia. Livre, Um
Bonde Chamado Desejo, onde nós, atores, fomos persuadidos a
abrir mão de trechos amados do texto (já decorados e marcados),
sem brigas ou cenas de sangue no final. Em Rainha[(s)], esse dom
foi utilizado em todo seu potencial, com maestria. É claro que,
nesse caso, um pouco de sangue teve que rolar pelos labirintos de
nossa arena, pois não se aparece com tesoura em punho na frente
de rainhas sanguinárias impunemente. A mão da direção, lanterna
dianteira, iluminava os caminhos, nos deixando ao mesmo tempo
livres para mudar repentinamente o curso da história. Nossa
intuição funcionava às vezes com a rapidez de uma guilhotina.
(Parênteses: também com rapidez coroada por uma áura de
certeza, Cibele um dia chegou na sala de ensaio e nos comunicou
que a partir daquele momento, as personagens seriam divididas.
Georgette iria representar Elizabeth I e eu Maria Stuart. Tratava-se
de mais uma inversão pois no decorrer dos improvisos e workshops
havíamos nos identificado com os personagens que não iríamos
fazer na peça. Não foi um susto. Foi mais um convite para o risco.
Aceitamos.)
Dia a dia, como bordadeiras em volta da mesa, cosendo para a vida
e para a morte, nos concentramos em costurar, colar, chulear,
cerzir, remendar, unir, ligar. O texto da peça teve, nessa primeira
fase, uma dezena de versões. Começamos a sentir necessidade do
arremate. Pairava no ar a sensação de que poderíamos ficar
debruçadas sobre o texto impresso no papel por mais seis meses,
no mínimo. Porém, o tempo corria atrás de nós. Resolvemos
assumir nosso papel de dramaturgas (tentando nos esquecer das
nossas lacunas para desempenhar tal função): saímos da sala de
ensaio e escrevemos. Os ensaios haviam começado em meados de
julho. Com a chegada da primavera, no dia 22 de setembro, o texto
encadernado chegou.1 Era nossa décima segunda versão. A "versão
final". Ou quase.
Retrabalhamos o texto por outro foco enquanto ensaiávamos,
decorávamos e descobríamos possibilidades de aprimoramento das
cenas, apoiadas pela cenografia, direção de cena e iluminação. O
trabalho de corpo desenvolvido por Tica Lemos também desvendou
muitas das malhas implícitas no texto. Estávamos em trânsito: do
texto para a tridimensionalidade. A estrutura do espetáculo foi
surgindo como uma imagem surge em papel fotográfico mergulhado
em química. O desenho da nossa dramaturgia se apresentou assim:
ATO I:
- Duas atrizes em busca de um coração.
- Atriz apaixonada traz Maria Stuart para a cena. Apresentação de
Maria.
ATO II:
- Apresentação de Elizabeth. Uma Rainha que nasce da sua
paramentação.
- O teatro dentro do teatro. Representação e côrte.
ATO III:
- Primeiro encontro. Na trilha de Schiller. A cena do encontro
próxima do texto original.
- Decisão. Primeira votação. A escolha nas mãos do povo.
ATO IV:
1 Por uma trama inteligente do destino, o texto encadernado chegou no mesmo
dia que Tica Lemos. Ela estava passando pelos arredores da nossa sala de ensaio
e parou ali para ouvir nossa primeira leitura do texto. Foi por acaso. Mas
rapidamente percebemos que Tica havia chegado para ficar. A partir daquele
momento, nossos corpos começaram a tomar forma na cena, regidos pela nossa
bailarina preferida. Mestra.
- Segundo encontro. Elizabeth e Maria na calada da noite. Segunda
votação.
ATO V:
- Esperando a Morte.
- Resultado. Cena da morte. Cinco versões diferentes.
O próximo passo foi o exercício de esquecer que o texto tinha sido
escrito por nós mesmas. Consideramos que a dramaturgia era
aquela. Era o que tínhamos. Nos apropriávamos dela como atrizes e
diretora frente a um texto tradicional de teatro, enquanto nos
distanciávamos enquanto autoras. A estrutura estava definida e a
maioria das cenas apontadas. Ensaiamos e estreamos. Porém, o
texto continua sendo lapidado. A última modificação foi feita em 19
de fevereiro de 2009. Décima nona versão. Estamos em cartaz.
Como a história demonstra, nada acontece assim, de modo tão
sistemático. Este recorte do trabalho de dramaturgia foi extraído da
pulsação da vida cotidiana. É nela que o ritmo dessa escrita habita.
Do chão ao coração, escrevemos com o que tínhamos em mãos.
Nossa técnica é o emaranhado das nossas vidas. Se me perguntam
se Rainha[(s)] também é um texto para ser lido, eu respondo com
veemência que sim. Por que não? Talvez a beleza desse trabalho
esteja na coragem do risco de escancarar suas imperfeições. Um
texto lapidado por mãos inexperientes. A pedra bruta é parte da
jóia. Um texto que foi escrito com o amor e o sangue dos nossos
corações ralados.
***
Processo colaborativo - relato e reflexão sobre uma experiência de criação
Por Luis Alberto de Abreu.
Texto extraído do cadernos da ELT nº 0 – março de 2003
Pode-se dizer que o processo colaborativo é um processo de criação que busca a horizontalidade nas relações entre os criadores do espetáculo teatral.
Isso significa que busca prescindir de qualquer hierarquia pré-estabelecida e que feudos e espaços exclusivos no processo de criação são eliminados. Em outras palavras, o palco não é reinado do ator, nem o texto é a arquitetura do espetáculo, nem a geometria cênica é exclusividade do diretor. Todos esses criadores e todos os outros mais* colocam experiência, conhecimento e talento a serviço da construção do espetáculo de tal forma que se tornam imprecisos os limites e o alcance da atuação de cada um deles.
Esse processo desenvolveu-se ao longo do tempo, a partir das necessidades da cena e de problemas práticos percebidos em seu processo de construção, revelando-se uma forma de criação eficiente, rica e satisfatória do ponto de vista dos resultados artísticos alcançados. E esse sistema de criação polifônico, para utilizar o conceito fundamental de Bakhtin em seu estudo sobre a obra de Dostoievski** (Bezerra,97),passa, agora, a exigir maior atenção, experiências mais aprofundadas e uma reflexão sistemática que possa servir como base e objeto de estudo para outros grupos e pessoas interessadas não só na análise, mas também na prática da criação teatral... É isso o que propõe esta reflexão.
Preferimos denominar essa experiência criativa e coletiva, que tem sido objeto de estudo e desenvolvimento na Escola Livre de Teatro de Santo André, com o nome de processo colaborativo (e não método colaborativo) não só para preservar o caráter vasto e intuitivo da criação, como pelo cuidado, nunca desnecessário, de não objetivar excessivamente o fim pretendido. Não era, e nem é, nossa pretensão estabelecer um conjunto de regras para levar a bom termo a criação de um espetáculo teatral. Sabemos por experiência que a criação artística, embora seja uma geometria racional possui elementos imponderáveis, e não queríamos proceder como se estivéssemos diante de um objeto de estudo apenas científico. Isso não significa que o processo colaborativo abra mão alguns princípios norteadores, sem os quais os riscos do processo de criação cair num subjetivismo vazio são por demais evidentes. O que pretendemos com este artigo é balizar o caminho percorrido e abrir uma reflexão teórica sobre uma prática já consagrada como bastante eficiente em nosso trabalho.
Breve histórico
O processo colaborativo provém em linhagem direta da chamada criação coletiva, proposta de construção do espetáculo teatral que ganhou destaque na década de 70, do século 20, e que se caracterizava por uma participação ampla de todos os integrantes do grupo na criação do espetáculo. Todos traziam propostas 34 cênicas, escreviam, improvisavam
figurinos, discutiam idéias de luz e cenário, enfim, todos pensavam coletivamente a construção do espetáculo dentro de um regime de liberdade irrestrita e mútua interferência.
Era um processo de criação totalmente experimental, muitas vezes sem controle, cujos resultados, quando havia, iam do canhestro ao razoável, com algumas boas, vigorosas e estimulantes exceções de praxe. Esses bons resultados estimulavam a continuação da busca de um novo processo de trabalho criativo, principalmente porque resultados canhestros apareciam também no processo tradicional - o teatrão, como era chamado -e que se caracterizava por forte obediência ao texto teatral e por uma divisão de trabalho comandada pelo diretor.
A criação coletiva possuía, no entanto, alguns problemas de método.
Um deles era a talvez excessiva informalidade do próprio processo. Não havia prazos, muitas vezes os objetivos eram nebulosos e se a experimentação criativa era vigorosa, não havia uma experiência acumulada que pudesse fixar a própria trajetória do processo. Era ainda, uma abordagem da criação totalmente empírica que se resumi,.
muitas vezes, em experimentação sobre a experimentação. Por outro lado, a ausência de alguém que pudesse organizar idéias, ações e personagens todo material proveniente das improvisações num texto prévio - dramaturgos eram escassos na época - fez com que o diretor comumente concentrasse em suas mãos e em sua ótica, o resultado, a "amarração final", como se costumava dizer. Isso fazia com que o processo perdesse, em determinado momento, seu caráter coletivo, assumindo a visão, ou a proposta de seu diretor. Nesse caso, se anteriormente o grupo dependia totalmente de como o dramaturgo pré-organizava o espetáculo através do texto - o que acontecia no processo tradicional -, agora o coletivo também corria o risco de ter um outro criador que, isoladamente, cumpria essa função, o que fazia com que o ideal de um coletivo criador não se cumprisse integralmente.
Questão igualmente importante era que a criação coletiva, em sua proposta de dar voz e direitos a todos os criadores, muitas vezes conduzia o resultado artístico a uma somatória das criações dos indivíduos, muitas vezes sem síntese e clareza. A ferocidade da crítica da época convencionou comparar alguns desses espetáculos a festas escolares de final de ano.
Durante os anos 1980, a aventura de chegar a uma criação coletiva que se pudesse contrapor ao sistema funcionalista vigente pareceu esqotar-se dentro de suas próprias contr adiçôes. Por sua vez o diretor , assumiu de vez o papel de condutor processo da criação teatral, substituindo, muitas vezes, o dramaturgo como geômetra das ações e pensador do corpo de valores éticos e estéticos do espetáculo. Ao contrário do que possa parecer, este foi um momento bastante rico para a cena brasileira. O diretor não se resumia mais a simples montador de textos. Libertos da servidão à escrita do dramaturgo, os encenadores tornaram-se os verdadeiros criadores do espetáculo, fazendo avançar a pesquisa cênica a limites até então inexplorados.
Quando não criavam os próprios textos onde se assentavam os espetáculos, apropriavam-se da dramaturgia de autores clássicos ou contemporâneos como suporte para sua criação, remodelando, cortando, fundindo cenas, muitas vezes dando outra configuração ao trabalho original do dramaturgo. Resultados belíssimos, originais e contundentes foram criados a partir da arquitetura cênica. No entanto, um processo coletivo de criação continuava solicitando reflexão e aprofundamento. Se o processo de criação convencional havia encontrado seu equilíbrio baseado na hierarquia representada pelo texto e na especialização das funções, a busca de um processo coletivo eficiente continuou seu percurso a procura de respostas aos problemas que sua ausência de método apresentava.
O que chamamos hoje de processo colaborativo começou a se aprofundar no começo dos anos 1990, o Teatro da Vertigem, de São Paulo, dirigido por Antonio Araújo, e a Escola Livre de Teatro de Santo André, são referências na busca da horizontalidade de relações artísticas entre seus integrantes. Experiências foram desenvolvidas, dentro do âmbito da Escola Livre, por criadores como Tiche Vianna, Cacá Carvalho, Antonio Araújo, Luis Fernando Ramos, Luís Alberto de Abreu, Francisco Medeiros e outros, na busca de refletir e desvendar alguns princípios que pudessem ordenar um trabalho de intensa criação e ao mesmo tempo sem hierarquias fixas e desnecessárias.
Um novo olhar
O processo da construção do espetáculo de forma partilhada por vários criadores levou, logo de início, à necessidade da revisão de uma série de conceitos relacionados à arte teatral. Percebeu-se, logo a princípio, que esse novo processo de criação não poderia conviver com o subjetivismo exacerbado que comumente acompanha o trabalho artístico. Num processo de criação partilhada não há muito espaço para "minha cena", "meu texto", "minha idéia". Tudo é jogado numa arena comum e examinado, confrontado e debatido até o estabelecimento de um "acordo" entre os criadores. É claro que esse acordo não significa reduzir a criação ao senso comum, nem transformar o vigor da criação artística num acordo de cavalheiros. É um acordo tenso, precário, sujeito, muitas vezes, a constantes reavaliações durante o percurso. Confrontação (de idéias e material criativo) e acordo são pedras angulares no processo colaborativo.
O principal conceito a se fazer revisão diz respeito ao próprio entendimento do fenômeno teatral. O princípio norteador do processo colaborativo é o conceito de que teatro é uma arte efêmera que se estabelece na relação do espetáculo com o público. A concepção de que o fenômeno teatral só existe enquanto relação espetáculo / público foi o primeiro passo para conduzir uma série de conflitos subjetivos para um campo objetivo. Teorias, visões estéticas, impressões, sentimentos, informações, todas esses elementos que são trazidas por atores, diretores, dramaturgos, cenógrafos, figurinistas e outros criadores, para a arena do processo de criação tinham agora referenciais concretos: o espetáculo e o público.
Aparentemente situar o fenômeno teatral na relação efêmera do espetáculo com o público é uma obviedade. No entanto, essa obviedade produz profundas mudanças. De um lado recoloca o público como elemento importante a ser levado em conta no processo de criação. De outro, afasta a ilusão narcisista de que toda complexidade do fenômeno teatral possa ser reduzida um único artista (seja ele dramaturgo, diretor, ator ou outro qualquer). Arte teatral, dentro desse conceito, não é apenas expressão do artista (qualquer que seja ela), mas uma complexa relação entre a expressão do artista e o publico***. A essa concepção parecem estranhas tanto as definições do teatro como a arte do ator quanto texto dramatúrgico ou geometria cênica. É claro que o eixo principal de um espetáculo pode ser o dramaturgo, o diretor, o ator, o cenógrafo ou outro criador, mas nenhum deles, isoladamente, define a totalidade do fenômeno teatral, que permanece por sua própria história e maneira de ser uma arte coletiva feita para ser partilhada por um outro coletivo, o público.
A re-introdução do público como valor a ser considerado num processo de criação artística é assunto complexo e que pede reflexão maior que não cabe no momento. Por ora, basta levantar que o público, em geral, não tem sido incluído como elemento fundamental nas discussões estéticas. É considerado, em geral, apenas, como destinatário passivo das formulações estéticas estabelecidas nas salas de ensaio, reduzido a mero observador da expressão do artista ou simples "pagante" de um entretenimento. No entanto, o público é o elemento que traz ao artista não só o pulso da contemporaneidade como é o fio que o conduz ao universo de sua própria cultura. A cultura, o tempo e o espaço histórico tornam-se lastro do fazer artístico, o que contribui para evitar o mero formalismo, comum em processos artísticos afastados do contexto cultural. Mas nosso objeto de reflexão é a gênese e os princípios norteadores do processo colaborativo. A ele voltamos.
O processo colaborativo se propõe basicamente a romper as fronteiras, quebrar os espaços privativos de criação na construção do espetáculo. Isso é proposto não por razões morais, por mera opção por um discurso igualitário, mas por razões práticas: o processo colaborativo tem-se mostrado eficiente como resultado artístico.
Situar o foco da criação na relação do espetáculo com o público pode ser uma decisão benéfica, mas por si só não garante o resultado pretendido. São necessários outros elementos norteadores para a condução do processo. Dado que o objetivo em vista é algo concreto - a construção do espetáculo - é óbvio que o primeiro elemento norteador deve ser também algo concreto: a cena. Antes de se chegar à cena, porém, existe todo um trabalho de definição de tema, mote ou assunto do espetáculo, pesquisa teórica ou de campo e, mesmo, discussões das primeiras imagens, idéias, improvisações dos atores ou de textos da dramaturgia.
Após esse período exploratório, onde todo material de pesquisa é tornado comum a todo o grupo, cabe à dramaturgia propor uma estruturação básica das ações de ações e personagens. Damos a essa estruturação o nome de canovaccio, termo que, na Commedia dell'Arte, indicava o roteiro de ações do espetáculo, além de indicações de entrada e saída de atores, jogos de cena, etc. Embora o canovaccio seja responsabilidade da dramaturgia ele não se constitui em mera "costura" das propostas do coletivo, nem uma visão particular do dramaturgo. É a resultante de todo o trabalho preparatório organizado em propostas de cenas. No canovaccio as improvisações, propostas de cena, imagens e conceitos do espetáculo, todo o trabalho anterior já aparece estruturado. O canovaccio contém, de forma embrionária, uma visão possível do espetáculo. E, como nada é permanente no processo colaborativo o canovaccio vai à discussão para aperfeiçoamento e possível reformulação.
A cena
A trajetória do processo colaborativo, como de resto em qualquer processo criativo, vai do abstrato ao concreto e do subjetivo ao objetivo, da intuição e do material informe presente no criador até o material objetivo e comunicável. Isso significa que uma idéia clara tem um peso significativamente maior do que uma sensação difusa e que uma imagem nítida, perfeitamente comunicável, tem valor maior do que do que uma idéia ou uma sensação. É importante essa trajetória em busca do concreto e do objetivo para que o processo não se dilua no perigoso prazer da discussão intelectual ou na confrontação de impressões e sensações imprecisas. Todo material criativo (idéias, imagens, sensações, conceitos) devem ter expressão na cena. A cena, como unidade concreta do espetáculo, ganha importância fundamental no processo colaborativo. Ela é o fiel da balança (, como algo concreto e objetivo, é hierarquicamente superior à idéia, à imagem, ao projeto, às visões subjetivas"
Esse dado é importante para que um simples argumento bem conduzido ou uma idéia bem engendrada não possam destruir a organização de uma cena que, mesmo ruim, custou trabalho e esforço dos criadores. A idéia bem engendrada ou o argumento bem conduzido devem transformar-se em cena. Só uma nova cena tem o poder de refutar a cena anterior. Essa é uma regra geral no processo colaborativo: tudo deve ser testado em cena, sejam idéias, propostas ou simples sugestões.
É importante ressaltar que consideramos cena não a unidade acabada mas qualquer organização de ações proposta por atores, diretores ou dramaturgos (A cena escrita tem o mesmo valor da cena interpretada!) e qualquer uma delas deve ser testada no palco ou sala de ensaio antes de ser refutada ou modificada por acréscimos ou cortes.
Se idéias, propostas verbais e avaliações não têm o poder de inviabilizar uma cena construída no papel ou no palco, esta, ao contrário, tem o poder de modificar o canovaccio, aprofundar o tema ou até provocar uma revisão na abordagem do assunto escolhido. Canovaccio, embora seja um ganho importante no processo de organização do trabalho criativo, não é lei a ser cumprida à risca. É uma proposta que visa insuflar ainda mais a criação e só esta, expressa na cena, tem o poder de efetuar mudanças.
A crítica
O processo colaborativo é dialógico, por definição. Isso significa que a confrontação e o surgimento de novas idéias, sugestões e críticas não só fazem parte de seu modus operandi como são os motores de seu desenvolvimento. Isso faz do processo colaborativo uma relação criativa baseada em múltiplas interferências.
E aqui começamos a pisar em terreno minado porque esse processo de criação busca também preservar o terreno da criação individual. Como conciliar, então, o aparente paradoxo de fomentar o impulso criativo dos indivíduos dentro do grupo e ao mesmo tempo preservar a permeabilidade das idéias? Como promover o livre trânsito da criação entre os participantes sem eliminar a demarcação dos territórios de criação? Até que lim ite o ator pode interferir na dramaturgia, o dramaturgo pode interferir no conceito da encenação e assim por diante? Não é possível demarcar os limites dessa interferência.
Mais: acreditamos que essas fronteiras não podem nem devem ser delimitadas.
A maneira como essa interferência se dá vai depender do grau de amadurecimento do grupo e da confiança entre os envolvidos no processo.
Dentro do processo colaborativo a interferência na criação alheia é um momento extremamente delicado, pois se na fase de confrontação de idéias o trabalho corre normalmente o mesmo pode não acontecer quando existe interferência no material criativo do companheiro. Talvez este seja o principal foco de tensão no processo colaborativo, porém, sem a liberdade dessa interferência o processo colaborativo não se estabelece.
Para superar e transitar com mais desenvoltura nesse momento fundamental do processo é necessário que se preserve as funções de cada artista. De um lado existe total liberdade de criação e interferência, mas de outro é vedado a um criador assumir as funções do outro. Ou seja, um ator pode discutir, sugerir mudanças, propor diálogos ou até mesmo escrever uma cena, no entanto é o dramaturgo que deverá fazer a organização desse material. Da mesma forma é vedado ao dramaturgo assumir funções da direção ou da interpretação embora se preserve a liberdade de mútuas interferências. Nesse sentido, a responsabilidade de cada um alcança não só sua área específica de criação, mas também colabora na área do parceiro.
A interferência é algo bastante delicado e requer um certo método não só para não ferir suscetibilidades, mas, principalmente, para que essa interferência se torne ferramenta eficiente e construtora na criação. Dentro do processo colaborativo a interferência mais aguda e necessária é a crítica. E ela deve se dar de forma especial.
O desenvolvimento de um olhar crítico sobre o próprio trabalho e sobre o trabalho do companheiro é condição fundamental para o desenvolvimento do processo. No entanto, olhar crítico não significa, em absoluto, uma simples avaliação estética sobre o trabalho alheio. É muitíssimo mais que isso, é um olhar criativo sobre a criação alheia.
Em primeiro lugar, o direito à crítica poderá ser exercido somente pelos criadores envolvidos. Os resultados têm sido desastrosos quando pessoas afastadas do processo de criação, por mais competentes que sejam, são chamadas para opinar. Afastadas do processo, desconhecendo os objetivos pretendidos ou o esforço empreendido pelos criadores, essas pessoas tendem, naturalmente, a analisar o que vêem como resultados e não como "algo em perspectiva", como imagens, formas e cenas em progresso, sujeitas, muitas vezes, a radicais transformações. O olhar de pessoas alheias ao processo é evidentemente útil e necessário quando o trabalho já se encontra em sua fase final, mais sólido, e os criadores menos inseguros.
Essa talvez seja a primeira característica necessária da crítica no processo colaborativo: ela tem de ser feita em "perspectiva", ou seja, conhecer e levar em consideração o objetivo que o criador procura alcançar, afastando se da simples avaliação de resultados.
Outra característica da crítica é sua objetividade. Comentários vagos, impressões difusas ou subjetivas, enfim, todo um conjunto de expressões imprecisas ou metafóricas devem ser banidas por serem inúteis e não contribuírem em nada para a compreensão dos problemas existentes no material criado. A crítica, como o olhar racional sobre o material criado, deve ser ampla, completa, profunda e objetiva. Mas, dentro do processo, colaborativo isso ainda não é o bastante. Se não é fácil identificar de forma objetiva o problema existente na cena ou não improvisação e, após isso, discuti-lo e aprofundá-lo, ao cabo de tudo, é imprescindível que o crítico traga propostas para solucionar o problema. É somente neste momento que a crítica transcende a mera avaliação e se insere no caudal criativo do grupo, tornando se um dos fundamentos da criação. A crítica, nesse sentido, agrega ao seu conteúdo racional, um esforço de criação, um valor sensível e intuitivo. Isso faz com que o momento da crítica, no processo colaborativo, seja ansiosamente esperado, pois é o momento quando há todo um esforço coletivo de avaliar, discutir e oferecer soluções e caminhos.
Conclusão
O universo da criação é consideravelmente vasto e dentro dele cabem inúmeros processos que podem conduzir ao um número igual de resultados estéticos consistentes. O processo colaborativo é não é mais do que um entre eles, nem pior nem melhor, nem ao menos é um processo exclusivo.
Artistas há que transitam por vários processos de criação e grandes obras têm sido criadas de forma solitária por artistas, da mesma forma que resultados medíocres podem ser construídos de forma partilhada entre muitos participantes. Reiteramos que o processo colaborativo não é método de se criar um bom espetáculo. Para isso não existem fórmulas nem métodos e na criação só sabemos como entramos nela e não como dela vamos sair. O que não quer dizer,é evidente, que todos os processos são igualmente bons e igualmente válidos. Um processo está intimamente relacionado ao fim desejado.
É o fim vislumbrado que nos leva a planejar os meios de alcançá-lo. O processo colaborativo tem se revelado altamente eficiente na busca de um espetáculo que represente as vozes, idéias e desejos de todos que o constroem. Sem hierarquias desnecessárias, preservando a individualidade artística dos participantes, aprofundando a experiência de cada um, o processo colaborativo tem sido uma resposta consistente para as questões propostas pela criação coletiva dos anos 1970: uma obra que reflita o pensamento do coletivo criador.
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*Quaisquer criadores, de qualquer área, podem integrar o processo colaborativo. Tomamos como base de reflexão apenas a atuação de dramaturgos, atores e diretores nesse processo por serem os criadores que de forma mais constante e intensa têm-se envolvido nesse tipo de criação.
**Problemas da Poética de Dostoievski, Forense Universitária, 2° ed., 1997. trad. Paulo Bezerra.
*** É bom que se esclareça que o termo público, aqui, não significa unidade monetária, o mero pagante de ingresso, mas, sim, uma unidade cultural, um conjunto de indivíduos que pensa, partilha sonhos, expectativas e um mesmo imaginário.
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